Editado em Portugal 'James', que dá voz a escravo Jim de "Huckleberry Fin

O premiado romance 'James', de Percival Everett, que recentra a narrativa de 'As aventuras de Huckleberry Finn' no escravo Jim, companheiro de Huck, contando a história a partir da sua perspetiva, é hoje publicado em Portugal.

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Lusa
07/03/2025 09:52 ‧ há 2 dias por Lusa

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Vencedor do National Book Award e do Prémio Kirkus, finalista do Prémio Booker, 'James' é uma sátira e um dos livros sensação de 2024, para críticos, publicações e livreiros, que conhece a partir de hoje uma versão em português, traduzida pelo escritor Bruno Vieira Amaral, editada na coleção Contemporânea, dos Livros do Brasil.

 

Em 'James', Percival Everett inverte o protagonismo do romance infantojuvenil de Mark Twain, publicado em 1884, e põe nas mãos do escravo negro as rédeas da história que, apesar de ser uma das mais icónicas da literatura norte-americana, é também uma das mais controversas.

Desde a sua publicação, o romance foi criticado pelo uso reiterado da palavra 'nigger', que foi contabilizada mais de 200 vezes, e pela caracterização de Jim, que muitos consideram perpetuar estereótipos raciais.

Outros defendem que Twain usou a linguagem realista da época para criticar o racismo e retratou Jim com humanidade e profundidade, para denunciar a escravidão e a segregação racial, como é o caso da escritora Toni Morrison, que, num ensaio, defendeu o valor literário e crítico de 'As aventuras de Hucleberry Finn', considerando que este clássico constitui um dos mais poderosos retratos da hipocrisia racial na história dos EUA.

Tal como no romance original com os mesmos protagonistas, também em 'James' se conta que Jim fugiu da escravatura no Estado do Missouri e Huckleberry Finn, abreviado para Huck, simulou a sua própria morte para escapar ao pai bêbado e abusivo, descendo juntos o rio do Mississípi, numa jangada.

A grande diferença é que no livro de Everett, o narrador é o homem privado da liberdade, que reescreve a sua história, começando pelo nome 'James', que escolhe para si mesmo e que dá o título ao romance.

"Quem é Jim? Quais as suas paixões? E até onde está disposto a ir para vingar os seus? 'James' é uma reinvenção brilhante de um clássico da literatura mundial, ferozmente divertido e provocador, e uma lição notável sobre o poder da linguagem", descreve a editora.

É Jim que dá o arranque da história, com a frase "Aqueles sacaninhas estavam escondidos nas ervas altas", referindo-se a Huck e ao seu amigo Tom Sawyer, que se preparavam para lhe pregar uma partida enquanto dormia.

Perfeitamente ciente das intenções daqueles "miúdos brancos" a "brincar a um jogo do faz de conta", Jim alinhou porque, como ele próprio diz, "compensa sempre fazer o que os brancos querem".

O tom está dado e, mais uma vez, há uma inversão em relação à história de Mark Twain, no que respeita à linguagem que é atribuída aos escravos, que no romance de Everett é propositada para agradar aos brancos, já que entre eles falam corretamente.

Percebe-se, assim, que a história tem três vozes diferentes, que são a voz do narrador, a voz da fala entre negros e a voz de escravo.

Logo no início da história, há um momento em que Jim adverte a filha sobre a forma como deve falar com a Senhora Watson, corrigindo-a para que use a "gramática errada correta", uma situação que se vai repetir mais à frente, com um grupo de crianças a quem dá uma "aula de linguagem" e a seguir explica-lhes porquê.

"Os brancos esperam que falemos de uma determinada maneira e só ganhamos em não os desiludir. Quem sofre quando eles se sentem inferiores somos nós. Talvez devesse dizer 'quando não se sentem superiores'".

Numa outra situação mais à frente, Jim e um amigo são abordados por um homem branco arrogante, que acaba por se ir embora sem perceber que fora gozado pelos dois.

O amigo pergunta, numa alusão às figuras tristes que o outro fará quando se embebedar -- na sequência da conversa que tinham tido antes -, se "isso será um exemplo de ironia proléptica ou de ironia dramática", ao que Jim responde "pode ser das duas".

A editora pega neste pequeno diálogo e aplica-o ao próprio romance, caracterizando-o como "um caleidoscópio de recursos expressivos", que nesta revisita de 'As Aventuras de Huckleberry Finn' vai mais além e aventura-se por territórios que haviam ficado inexplorados.

Pelo caminho, deixa reflexões sobre o que fariam os brancos a um negro que aprendera a ler e a escrever, em tempos de escravatura e no raiar da guerra civil americana, o que fariam a um escravo que sabia o que era uma hipotenusa, entendia o significado da ironia, sabia soletrar a palavra retribuição, o que fariam se tivesse a capacidade de os confrontar e se, ciente do seu mundo e amantíssimo da sua família, se elevasse acima de quaisquer expectativas.

Percival Everett conta que Mark Twain o marcou com o seu humor e a sua humanidade muito antes de ele próprio se tornar escritor, tendo lido as aventuras de Huck pela primeira vez aos sete anos de idade.

Numa entrevista para o 'podcast' da Waterstones, o autor confessou que para escrever 'James' leu 'As aventuras de Huckleberry Finn' algumas 15 vezes, recomeçando imediatamente do início de cada vez que terminava, até não suportar mais o livro.

Isto permitiu-lhe conhecer bem "aquele mundo" e dele retirar o que lhe interessava para o seu texto.

O conceito na génese do romance surgiu a partir de uma simples dúvida que assolou o autor há cerca de quatro anos, quando lhe ocorreu se alguém já teria contado a história a partir do ponto de vista de Jim, constatando que não, após fazer uma pesquisa.

"Questionei-me por que isso nunca teria acontecido e apercebi-me que, em 64 anos, eu também nunca pensara nisso. Foi então que embarquei", revelou.

Percival Everett, de 68 anos, nascido nos Estados Unidos em 22 de dezembro de 1956, conta mais de trinta obras publicadas, e vários prémios e distinções acumulados.

O seu romance 'As árvores', também publicado em Portugal, foi finalista do Prémio Booker 2022 e um romance anterior, 'Erasure', foi adaptado para o filme 'American Fiction', vencedor de um Óscar em 2023 para melhor argumento adaptado.

Percival Everett é membro da Academia Americana de Artes e Ciências e professor na Universidade do Sul da Califórnia. Vive em Los Angeles com a mulher, a romancista Danzy Senna, e dois filhos, e escreve numa oficina, onde também repara guitarras.

Leia Também: Romance de Luísa Sobral é história que quis ser escrita para lá da canção

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