Machismo? "Lembro-me de contestar essa realidade desde os cinco anos"

Tânia Graça, psicóloga e sexóloga, é a convidada do Vozes ao Minuto desta terça-feira.

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© Cortesia Pedro Lopes

Mariana Moniz
04/03/2025 08:16 ‧ há 7 horas por Mariana Moniz

Fama

Tânia Graça

Tânia Graça é uma das vozes mais conhecidas no que à temática do empoderamento feminino e sexual diz respeito. Nasceu em Loulé, no Algarve, e desde cedo percebeu que os padrões machistas que a rodeavam tinham de ser combatidos de alguma forma. Estudou Psicologia na Universidade de Lisboa e, mais tarde, tirou um mestrado em Sexologia, Orientação e Terapia Sexual pelo Instituto Europeo de Formación y Consultoría de Madrid.

 

Procura diariamente salvaguardar os direitos das mulheres, tendo feito, inclusivamente, voluntariado na Índia durante três meses para lecionar Educação Sexual às meninas e mulheres dessa comunidade.

Atualmente, com 33 anos, recorre ao Instagram como principal plataforma de trabalho, abordando diversos temas, como as relações, o feminismo e a sexualidade de uma forma descontraída, mas educativa. 

Tânia Graça é também cronista no jornal Público e grava, semanalmente, o podcast 'Voz de Cama' para a Antena3, ao lado de Ana Markl. Uma das suas maiores conquistas foi o convite que recebeu para representar Portugal na Comissão Europeia, onde falou e ouviu falar sobre o trabalho que está a ser feito no que diz respeito à defesa dos direitos das mulheres. 

Foi uma infância algo conturbada, mas que me deu muitas informações que foram úteis para aquilo que sou hoje e para o que faço 

Como é que era Tânia Graça durante a sua infância?

Era uma menina que vivia em Loulé, no Algarve. Em criança já dava sinais de que seria voltada para a comunicação, porque gostava imenso de falar para as pessoas ouvirem… E de cantar para as pessoas ouvirem [risos]. Quando havia festinhas na escola era, muitas vezes, a solista ou a apresentadora, porque de facto tinha um à vontade que as pessoas achavam engraçado. Sempre dei respostas inesperadas e muito adultas para a idade.

Foi uma infância algo conturbada, mas que também me deu muitas informações e evidências que foram úteis para aquilo que sou hoje e para o que faço. As mulheres da minha família, na sua maioria, viviam em contextos bastante machistas, de alguma submissão e domínio masculino, e isso sempre foi uma coisa que me revoltou um pouco, mesmo em criança. Questionava muito e isso irritava as pessoas. Questionava aquilo que eram verdades absolutas [na altura]. Quem levantava a mesa éramos nós mulheres, quem tratava da casa éramos nós, mulheres. E perguntava: 'Mas porque é que somos nós?' E nunca ninguém me sabia responder muito bem. 'Somos nós, porque somos nós'. Ou seja, a par deste gostar de falar para os outros, de ser ouvida, de ser aplaudida e de ter atenção, era também aquela que fazia as perguntas que aborreciam os outros.

Acho que as mulheres - e isso nota-se até hoje - tomavam esse papel para si como um critério de qualidade, do género: 'Eu faço bem este papel que me foi atribuído'. Os adultos, às vezes, ficam um pouco incomodados com os questionamentos das crianças e particularmente das meninas, porque não é suposto levantar muito a crista. E eu era bem comportada, sim, mas contestatória das verdades impostas e absolutas. 

Notícias ao Minuto Tânia Graça© Fotografia de cortesia  

Com que idade é que te começaste a aperceber de que esses padrões eram machistas? 

A palavra 'machismo' só entrou na minha vida muito mais tarde, mas lembro-me de contestar essa realidade desde os meus cinco, seis anos. Inicialmente, nem era uma coisa zangada. Com o tempo é que fui ganhando alguma revolta e comecei a achar que era injusto. Eu pensava: 'Se tanto a minha mãe como o meu pai saíram para trabalhar, por que é que ao chegar a casa, é ela que ainda tem este segundo emprego que é cuidar da casa?' E, progressivamente, essas dúvidas foram ganhando mais espaço na minha cabeça e, quando comecei a estudar, foi tudo ganhando nomes e fundamentação. Percebi que não acontecia só na minha casa.

Aliás, sempre que publico alguma coisa sobre a desigualdade na divisão de tarefas domésticas, aparecem comentários de senhores muito zangados, como: 'Fala por ti, isso é na tua casa'. A minha casa é um exemplo que ilustra isso, mas eu não estou a falar da minha casa! Estou a falar de estatísticas recentes que mostram essa desigualdade, que se mantém e que acho que ainda está para durar muito. Embora trabalhe para que o contrário aconteça. Isto para dizer que não tomo o exemplo da minha casa como a realidade do mundo.

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Apesar disso, quando te lembras da tua infância, quais são os momentos mais especiais que destacas?

Penso que os melhores momentos têm muito que ver com o que estava a falar há pouco - apresentar festas na escola, sentir que aquilo que dizia interessava às pessoas que me estavam a ouvir. Gostava dessa atenção e ainda hoje gosto, claramente. Mas não é algo que procure para aplaudirem. Gosto é de sentir que aquilo que estou a dizer é útil e que acrescenta. A visibilidade que tenho hoje em dia foi uma consequência, não sabia que estava a caminhar para aí. Nem sonhava! 

Sendo uma doença terminal, acrescenta camadas de dor, porque tu vais assistindo à progressiva deterioração da pessoa, especialmente se for uma coisa prolongada. E, no caso do meu pai, foi

O teu pai faleceu quando tinhas 13 anos, vítima de um cancro terminal. De que forma esse acontecimento impactou a tua vida e o teu futuro?

Foi duro! A perda de um pai ou de uma mãe, quando és tão jovem, é sempre difícil. Não há volta a dar. Sendo uma doença terminal, acrescenta camadas de dor, porque tu vais assistindo à progressiva deterioração da pessoa, especialmente se for uma coisa prolongada. E, no caso do meu pai, foi. Ele começou por ter cancro no pulmão, depois teve um tumor cerebral. Foi um processo longo e, mesmo em fase terminal, ainda demorou uns seis meses. Eu era muito nova e assistir a tudo aquilo foi muito duro. Foi também um período que se tornou importante, porque a minha mãe, vendo-me a passar por aquilo e não sabendo ajudar, levou-me a uma psicóloga, a Fátima. Esse foi o primeiro contacto que tive com a psicologia e adorei. A psicóloga era incrível. E lembro-me de pensar: 'Ela está a ser paga para me ouvir e ajudar!' Achei aquilo fascinante, uma profissão maravilhosa. Esse acompanhamento foi crucial, mas foi muito difícil para a minha mãe financeiramente, nós estávamos a passar por muitas dificuldades económicas.

Mas foi uma decisão que partiu dela.

Foi, o que eu acho fascinante. Ainda hoje - apesar de cada vez menos - a saúde mental é um tema tabu. E a minha mãe ter tido esse discernimento há 20 anos, não estando ligada a essas temáticas, foi incrível. Ela própria estava a passar por uma depressão e sentiu que eu poderia ir pelo mesmo caminho, tendo em conta toda a situação. Foi realmente duro assistir à fase terminal do meu pai. Ainda fui acompanhada pela psicóloga durante algum tempo, mesmo depois da morte dele, mas fiquei sempre com aquele pensamento: 'Que profissão incrível'.

Não sei como teria lidado, não só com a morte, mas com todo aquele período de doença terminal, se não fosse a psicoterapia. Não sei que significados é que teria atribuído. Foi mesmo muito duro de assistir, muito visual. Veres a degradação física e mental de uma pessoa que tu conheceste a vida toda, é realmente muito duro. E se é difícil para um adulto, o que será para uma criança/adolescente que ainda está a desenvolver a sua personalidade. Mas acho que a morte do meu pai também me trouxe alguma consciência do que são esses processos, do que é que a dor pode fazer connosco.

Notícias ao Minuto Tânia Graça com o pai© Fotografia de cortesia  

Tinhas uma boa relação com o teu pai?

Tinha mas, quer dizer, o meu pai era o típico homem que cresceu nos anos 1960 e era o típico pai dessa época também. Ou seja, mais alienado, mais periférico. Ele estava ali, sim senhor, mas quem tinha as rédeas da parentalidade era a minha mãe, não era ele. O meu pai estava um pouco demitido desse papel, dos cuidados. Era a minha mãe que assumia isso tudo. Algo que, na época, era ainda mais marcado do que é hoje.

Acho que, atualmente, os homens têm tentado envolver-se mais na parentalidade - mesmo assim, os números continuam a mostrar que nós, mulheres, estamos muito sobrecarregadas a esse nível. Como dizia há pouco em relação às tarefas domésticas, acho que relativamente à parentalidade, as mulheres também sempre tiveram muito aquela ideia de que 'mãe sou eu', 'mãe é mãe' ou 'tenho este papel para me validar'. Os homens não eram chamados a isso e, por essa razão, os laços com os pais não se desenvolvem tão profundamente. Claro que gostava muito do meu pai, mas não posso dizer que tinha uma relação de extrema profundidade.

Acho que existem muitas ideias preconcebidas sobre os apoios sociais e as pessoas que são 'subsidiodependentes'. Tenho de dizer que só através desses apoios é que foi possível estudar e ascender no elevador social 

Vieste para Lisboa estudar aos 17 anos. Como foi essa mudança, uma vez que vieste sozinha? 

Durante muito tempo, fui um bocado cuidadora da minha mãe, sempre muito preocupada com ela e com o que ela precisava. Então, eu dizia que não viria para Lisboa estudar para não deixar a minha mãe sozinha. Entretanto, a minha mãe refez a sua vida, teve uma outra relação e isso meio que me libertou. Foi uma decisão consciente de que seria muito difícil, porque ela ganhava o ordenado mínimo e tinha uma 'pensãozeca' de viuvez. Vir morar para Lisboa já era caro na altura. Foi uma decisão tomada com muito esforço por parte da minha mãe, porque o dinheiro que ela me dava era quase tudo o que ela tinha. Eu trabalhava todos os verões, porque voltava para o Algarve e lá trabalha-se bastante em hotelaria e restauração nessa época. Cá em Lisboa, tentava conciliar os estudos com pequenos trabalhos para a ajudar. Cheguei a trabalhar numa agência de publicidade para contribuir. Mas enquanto isso não aconteceu, tive ajuda da minha mãe e direito a bolsa de estudos. 

Apesar de tudo, todos esses apoios estatais (até a 'pensãozeca'), por mais pequenos que fossem, permitiram-me estudar e chegar onde cheguei. Acho que existem muitas ideias preconcebidas sobre os apoios sociais e sobre as pessoas que são 'subsidiodependentes'. Há um preconceito em relação a quem beneficia deles, mas tenho de dizer que só através desses apoios é que foi possível estudar e ascender no elevador social. 

Notícias ao Minuto Tânia Graça na faculdade© Instagram  

E quando te mudaste para Lisboa já sabias que querias estudar psicologia?

Mais ou menos [risos]. Havia vários cursos que me interessavam: Psicologia, Ciências da Comunicação e Direito. Este último foi surgindo em conversas com outras pessoas e até com a minha mãe que me dizia para ter um curso mais seguro, com mais prestígio. Na altura, pensei: 'Ela já está a fazer um sacrifício tão grande, se calhar devia ouvi-la'. E pronto, fui estudar para a Faculdade de Direito de Lisboa.

Fiz o primeiro semestre e, ainda me agarraram ali, porque havia uma cadeira em particular em que nós estávamos a falar dos direitos dos menores e aquilo interessava-me. Mas quando passo para o segundo semestre e começamos a falar de negócios jurídicos… esquece [risos]. Tenho muito orgulho nessa Tânia de 18 anos. Com aquela idade, percebi que aquilo não era para mim. No curso todo, só havia uma cadeira que me interessava, que era Direito da Família - o que tem a sua graça, porque depois a minha especialização em Psicologia foi em Terapia Familiar e de Casal. 

E pronto, depois dei conta de que o caminho não era aquele, comuniquei à minha mãe, uma coisa que me custou imenso, porque senti que a estava a desiludir. Mas ela compreendeu. Fui trabalhar, tirei a carta de condução, pois quis ficar a morar em Lisboa. Em 2010, candidatei-me então a Psicologia e entrei na faculdade. Nunca me arrependi. 

Sempre que as minhas amigas iam sair com alguém, a primeira coisa que lhes perguntava era: 'Vieste-te?' Na altura, já sabia da importância do orgasmo feminino

Tens também um grande interesse pelas temáticas da sexualidade e do empoderamento feminino. Esse interesse surgiu nos tempos de faculdade?

Na verdade, esse interesse já vinha de antes. Sempre fui uma jovem, mesmo em adolescente, que falava muito abertamente sobre essas temáticas. Não sei exatamente porquê. Não teve que ver com a minha educação em casa, porque não se falava dessas coisas. Sempre estive à vontade, comecei a namorar cedo, então fui tendo contacto com a realidade das relações amorosas relativamente cedo. Era a amiga a quem recorriam para pedir conselhos sobre essas coisas. Era engraçado, porque eu não sabia mais do que as outras, apenas falava disso tranquilamente.

Quando entrei para a faculdade, percebi logo que tinha muito interesse em cadeiras que estavam ligadas a relações. Psicologia das Relações Pessoais, por exemplo. Dizia-me muito. Esse à vontade em falar sobre sexualidade foi crescendo e sempre estive muito consciente da importância do prazer da mulher. Por exemplo, sempre que as minhas amigas iam sair com alguém, a primeira coisa que lhes perguntava era: 'Vieste-te?' E elas ficavam todas constrangidas [risos]. Na altura, já sabia da importância do orgasmo feminino. É importante e, muitas das vezes, a pessoa que está connosco não dá assim tanta importância. Mas sim, sempre estive muito à vontade com essa temática e as minhas colegas incentivaram-me a tirar uma especialização em sexologia quando acabasse a licenciatura.

Na altura, nem pensava nisso muito a sério, mas dois anos depois de ter acabado o curso, fui estudar sexologia. Antes disso, trabalhei na área da proteção de crianças e jovens em risco. Tinha feito um estágio curricular nessa área e depois fui para São Miguel, nos Açores. E fui porque para conseguir entrar na Ordem dos Psicólogos tinha de ter um estágio profissional e não estava a conseguir aqui [em Lisboa].

Notícias ao Minuto Tânia Graça© Pedro Lopes  

Depois disso, tiraste então o mestrado em Sexologia, Orientação e Terapia Sexual pelo Instituto Europeo de Formación y Consultoría, em Espanha. Como foi essa experiência?

Esse instituto fica em Madrid, mas não fiz o mestrado lá. Fiz à distância. E foi engraçado porque, na altura, as aulas à distância não eram como atualmente. Era meio esquisito. Só que entretanto veio a pandemia e, de repente, aquilo ganhou todo o sentido. 

Mas sim, fiz o mestrado em espanhol, porque gostei muito do programa e vi que o instituto era bastante conceituado. Ganhei bastante conhecimento sobre a área da sexologia. Em paralelo, fui tendo contacto com alguns movimentos feministas, com algumas associações de proteção dos direitos das mulheres, como a UMAR (União de Mulheres Alternativa e Resposta), por exemplo. Fui tendo contacto com pessoas, com trabalhos que me ajudaram a fundamentar e a dar nomes às coisas. 

Com o tempo, fui-me afirmando feminista e fui conhecendo outras pessoas que estão nesta luta. Percebi que não estava sozinha

Afirmaste que, durante muito tempo, não sabias que aquilo que desejavas para a sociedade afinal tinha um nome: feminismo. E assumiste também que chegaste a ter algum receio de te autointitulares feminista. Tendo em conta que agora és uma das vozes mais potentes nessa área, como é que combateste esse medo? 

Quando me dei conta de que aquilo que eu queria para o mundo era uma igualdade e que isso tinha um nome, também percebi que essa palavra criava resistência à qual estavam associados muitos preconceitos. A ideia da feminista zangada vem, acho eu, das atitudes das primeiras mulheres que começaram a reivindicar os seus direitos. Temos o exemplo da Emily Davison que, na luta pelo voto, se atirou para a frente de um cavalo e morreu. Isto criou a ideia de que as feministas são mulheres zangadas e que odeiam os homens.

Mas não se trata disso! De facto, é difícil, reconhecendo as desigualdades no mundo, não ficar zangada. Quando nos damos conta das repressões que sofremos, claro que ficamos zangadas. Mas também acho que o feminismo não tem de significar estar sempre com essa bandeira no ar e tenho vindo a conseguir, com o tempo, falar destas coisas como menos zanga. Hoje em dia, tenho procurado um lugar que transmita a mensagem, mas que não afaste quem ainda está em cima do muro. 

Com o tempo, fui-me afirmando feminista e fui conhecendo outras pessoas que estão nesta luta. Percebi que não estava sozinha. E à medida que ia estudando, lendo ou ouvindo mais mulheres, ia-me sentindo cada vez mais legitimada para os meus posicionamentos. Progressivamente, fui perdendo esse receio e o meu trabalho também me deu mais confiança. Pronto, olha, deram-me corda e agora cá estou eu [risos]. Na verdade, dão-me corda, mas também a tentam puxar para trás. A visibilidade também trás isso: estás a falar para mais pessoas que acreditam no mesmo que tu e que lutam pelo mesmo, mas também estás a falar para mais pessoas que pensam que és uma feminista louca, uma mal-amada ou até lésbica! Sim, há aqui uma assunção de que uma mulher que é feminista não gosta de homens. E usam essa orientação sexual como uma tentativa de ofensa. 

Não ia falar de masturbação com mulheres que nem sabiam muito bem o que era a menstruação e de onde é que ela vinha. Este espírito que levava era de branco ocidental e colonialista

Em 2019, fizeste voluntariado na Índia durante três meses. Como surgiu essa oportunidade e porquê escolher esse país para ensinar educação sexual?

Depois de ter estado em Madrid, o meu interesse em conhecer outras realidades aumentou. Em 2016, fiz um projeto de voluntariado na Nicarágua, estive lá um mês e meio e trabalhei com crianças. A Índia surge, porque estava quase a terminar o mestrado em Sexologia, já tinha começado a produzir conteúdo no Instagram - ainda que timidamente - queria fazer um novo projeto no estrangeiro e queria transmitir conhecimentos que fossem úteis a outras realidades diferentes da minha.

Comecei a procurar algumas associações e encontrei esse projeto que estava a decorrer na Índia. Era um projeto de empoderamento de meninas e mulheres que tinha várias vertentes: a parte da educação, sendo que muitas delas não sabem ler nem escrever; para as mulheres adultas havia professores que as ensinavam a costurar e a fazer outras coisas para que elas pudessem ganhar dinheiro - porque não há empoderamento sem independência financeira - e depois os voluntários podiam 'levar' conhecimentos que pudessem ser enriquecedores para elas e para a sua vida. Então, decidi trabalhar com a parte da educação sexual.

A Índia foi um banho de humildade e de realidade

Tinha 27 anos na altura. Fui com uma ideia bem definida daquilo que queria ensinar, porque já falava do assunto aqui em Portugal, mas quando lá cheguei percebi que não ia ser bem assim. Não ia falar de masturbação, por exemplo, com mulheres que nem sabiam muito bem o que era a menstruação e de onde é que ela vinha. Este espírito que levava, era um espírito de branco ocidental e colonialista, do género: 'Olha, eu sei aqui umas coisas e vou ensinar-te como é que tu vais viver'. E não! Se tu viajas para um país onde as pessoas já vivem de uma determinada forma, podes querer levar um 'input', mas tens de perceber que 'input' é que é útil. Masturbação não ia ser útil, pelo contrário. O mais provável era as miúdas deixarem de ir ao projeto, porque se os pais soubessem ia ser um escândalo. A Índia foi um banho de humildade e de realidade.

Notícias ao Minuto Tânia Graça na Índia© Fotografia de cortesia  

Que estratégias adotaste?

Comecei por outro lugar, porque a educação sexual não é só sobre sexualidade ou sexo. Falei sobre autoestima, autoconhecimento, autonomia corporal. Fui caminhando por aqui e, progressivamente, fui entrando na parte da sexualidade - sempre muito ligada à saúde e não ao prazer. Falei da prevenção da gravidez, mas sempre em contexto de casamento, porque não elas não podem ter relações antes. Não lhes podia dizer: 'Quando tiveres uma relação casual, usa preservativo'.

Foi uma experiência bastante transformadora. Nessa altura, também cresci no Instagram, porque as pessoas gostam de acompanhar viagens. Fui sempre produzindo vídeos, mas era difícil, porque a zona onde estava, Jodhpur, era muito barulhenta. Para gravar vídeos era o inferno. A cidade era muito caótica, mas fui sempre produzindo conteúdo e, quando voltei, foi quando comecei a receber alguns convites para ir à televisão e a ganhar outra visibilidade em meios de comunicação.

Porque intitulas a Índia de 'Terra da Saudade'?

Numa das atividades que fizemos, mostrei-lhes uma música da Mayra Andrade [cantora cabo-verdiana] que se chama 'Terra da Saudade'. Foi engraçado, porque elas cantaram em português sem saber exatamente o que estavam a dizer. E essa música faz-me muito lembrar a Índia, porque a ouvi imenso nessa altura e meio que se tornou a terra da saudade, porque é um sítio que… deixa saudades. Acho que é difícil tu passares por aquele país e saíres ilesa. É difícil regressares igual. 

Houve algum momento que te tenha impactado mais nessa viagem?

Tive conhecimento de muitos casos de violência doméstica, de casamentos forçados ou arranjados, miúdas que casaram ainda menores e com homens muito mais velhos. Isto causa uma sensação de impotência gigante, a maneira como aquelas pessoas vivem às vezes colide com direitos humanos básicos que tu trazes. Não podia impedir uma menina de se casar. Claro que podemos sempre fazer uma queixa, mas essas coisas estão muito entranhadas culturalmente. Essa sensação de impotência era um bocado aflitiva. 

Estes temas ainda são um tabu, com muita desinformação. As pessoas querem saber, mas têm vergonha de perguntar, porque se sentem muito sozinhas nas suas questões

Entretanto, veio a pandemia, cresceste imenso no Instagram e criaste vários projetos. Sentiste que foi nessa altura que o teu trabalho começou a ser mais reconhecido? As redes sociais facilitaram ou dificultaram? 

No meu caso, as redes sociais só facilitaram! Se não fosse o Instagram, não estavas aqui a falar comigo, porque não me conhecias de lado nenhum [risos]. As redes sociais são o meu canal de televisão para o mundo. Na pandemia, houve uma junção de fatores que acho que levaram a esse crescimento. Por um lado, estávamos todos em casa e agarrados ao telemóvel. Por outro, estes temas ainda são um tabu, com muita desinformação. As pessoas querem saber, mas têm vergonha de perguntar, porque se sentem muito sozinhas nas suas questões. Claro que também teve que ver com o meu empenho, com o meu esforço e com a forma como trago esta informação. É cientificamente rigorosa, mas é descontraída. 

Tendo em conta que a tua página de Instagram também tem um papel educativo, sentes algum tipo de pressão quando falas destes temas?

Sinto que, com a exposição, a minha responsabilidade também foi crescendo. Até a minha consciência sobre isso. As pessoas tomam aquilo que digo como verdade e, eventualmente, poderá ter implicações na sua vida. Se alguém me pergunta alguma coisa sobre os efeitos da pílula ou sobre terminar ou não uma relação, aquilo que vou responder - que, neste momento,  já é para um número considerável de pessoas - tem de ser rigoroso e informativo, mesmo que seja num tom mais brincalhão. 

Recorres muitas vezes ao humor e aos filtros do Instagram para explicar certos assuntos. Sentes que assim chegas mais facilmente ao teu público? 

Sim, sem dúvida! Como te disse há pouco, quando comecei a publicar conteúdo nas redes sociais, o meu objetivo não era tornar-me uma voz de nada em particular. Gosto de ser ouvida, sinto que tenho coisas úteis a dizer, então vou dizê-las. E isto ganhou proporções [risos]. Sendo um tema que é tenso para muitas pessoas, acho que deva falar com descontração e com uma linguagem acessível. O objetivo da comunicação é passar uma mensagem. Se eu falar com um léxico que não é acessível a quem não estudou o mesmo que eu, então não estou a comunicar, estou só a falar sozinha. 

E o que é mais difícil no teu trabalho?

Trabalhar com redes sociais é um pouco exaustivo, pelo menos para mim. Para já, o trabalho persegue-te, está sempre aqui [no telemóvel]. Depois, quero muito dar resposta às pessoas, mas é humanamente impossível. No início, isso dava-me muita ansiedade, porque queria responder, queria ajudar, queria que a pessoa tivesse a informação que me pediu e eu não conseguia. Não consigo! São muitas perguntas e às vezes são suficientemente extensas e complexas para ser preciso um acompanhamento. Com o tempo, aprendi a ter mais calma e a pacificar-me pelo facto de não conseguir responder a todas as pessoas ou de não ir a todos os temas que gostava. Mas acho que isso é o mais difícil, sim. O equilíbrio entre o meu trabalho e a minha vida pessoal não é incrível.

Tens realmente vários projetos em mão. Há algum que te dê mais prazer fazer?

Não posso definir um em concreto, mas acho que toda a gente sabe que o 'Voz de Cama' tem um lugar muito especial no meu coração. A Ana [Markl] é uma pessoa muito iluminada, muito sábia. Ela diz-me sempre: 'Tu é que és a especialista, eu só falo da vida'. Mas o 'só falar da vida' é muito rico. É uma pessoa muito especial, tal como o podcast. Já fomos para os palcos e tudo! Acho que temos feito um trabalho conjunto e de desconstrução muito interessante e valioso. Complementa muito aquilo que já faço no Instagram e nas outras formas de comunicar. Adoro fazer rádio! Tem uma alma diferente.

Notícias ao Minuto Estreia do 'Voz de Cama' no Teatro Maria Matos© Fotografia de cortesia  

Foste diagnosticada com hiperatividade e défice de atenção (PHDA). Sentes que isso te prejudica de alguma forma ou dificulta gerir o teu trabalho?

Fui diagnosticada há um ano, em janeiro de 2024. Não tive muita informação sobre esta perturbação na faculdade, era sempre mais associada às crianças e não aos adultos, então nunca achei que pudesse ter PHDA. Depois fui lendo sobre o assunto, identificando uma série de coisas da minha vida toda que são sintomáticas desta perturbação, tive uma consulta na psiquiatria e confirmou-se o diagnóstico. É um certo alívio, porque há uma série de características tuas que ganham uma justificação. Percebes que afinal não tens uma memória miserável ou não és distraída. Há partes disso que estão relacionadas com o PHDA. 

Houve decisões que tomei na minha vida que me trouxeram a um bom lugar, mas que foram um pouco arriscadas e que claramente tiveram que ver com a minha impulsividade

Até janeiro do ano passado, nunca estive medicada. Isto afeta, mas também traz coisas boas ao meu trabalho. Por exemplo, pessoas com esta perturbação são, sem querer generalizar, muito criativas, porque como o pensamento é muito solto, a associação de ideias é muito rápida. Claramente que isso me ajudou. O PHDA também te torna mais impulsiva. Houve decisões que tomei na minha vida que me trouxeram a um bom lugar, mas que foram um pouco arriscadas e que claramente tiveram que ver com a minha impulsividade. 

Existe uma certa dificuldade em focar-me em determinadas tarefas que são necessárias, sim. Mas não é tanto por aí, não é só o trabalho. É o barulho que faz cá dentro. Está muita coisa a acontecer [na cabeça] e a medicação ajuda imenso nessa parte.

Tens várias formas de confirmar que estás a fazer um bom trabalho e, para mim, este convite foi um selo muito importante

Estiveste três vezes em Bruxelas para representar Portugal na Comissão Europeia. O que aprendeste com essas vivências?

Estive duas vezes em Bruxelas e uma em Estrasburgo, mas sempre ligadas à Comissão. Todas foram especiais. Estás ali com pessoas da Europa inteira e chamaram-te para contribuir de alguma forma para as conversas e para o pensamento conjunto. Gostei particularmente da última vez, porque foi na Semana Europeia da Igualdade Género, em novembro. Foi incrível. Tens várias formas de confirmar que estás a fazer um bom trabalho e, para mim, este convite foi um selo muito importante. Fui representar Portugal, falar dos meus temas. Percebi que sou uma voz relevante nesta temática, ou seja, estou a fazer alguma coisa que está a ter impacto, senão a Comissão não me notava. E notou. Senti-me muito lisonjeada. 

O contacto com a realidade dos outros países nestas áreas ajuda-me a sentir que não estou louca, que isto é real e não é só em Portugal. Traz-me conhecimento do que está a ser feito

É muito interessante o contacto que tens com outras pessoas que fazem trabalhos relevantes nos seus países. Dá-te uma perspectiva muito real do que está a acontecer na Europa. Por exemplo, desta última vez ouvi uma rapariga da Polónia a contar como estavam a questões do aborto e da violência doméstica. E foi duro. Algumas realidades são muito duras de ouvir mas, ao mesmo tempo, dá-te uma perspectiva que tu não vês nas notícias. É alguém da área e do próprio país que nos está a contar.

Vês também o que é que o Parlamento Europeu está a fazer em relação a certos temas, como a igualdade salarial. Ou seja, o contacto com a realidade dos outros países nestas áreas ajuda-me a sentir que não estou louca, que isto é real e não é só em Portugal - embora seja triste - e traz-me conhecimento do que está a ser feito. Além disso, eu própria posso partilhar a nossa realidade. É muito enriquecedor.

Notícias ao Minuto Tânia Graça no Conselho Europeu© Fotografia de cortesia  

Tendo em conta que cresceste no seio de uma família com padrões machistas, como é que lidam com o facto de quereres contrariar esses padrões e falar destes temas sem tabus?

Na verdade, nunca recebi uma crítica negativa por parte da minha mãe relativamente ao meu trabalho, mas tive medo de receber. Houve fases em que ela, pelos condicionamentos em que foi criada, tinha uma ideia definida do que queria para a minha vida. Quando comecei a aparecer publicamente para falar destes temas, tive medo da reação dela. Lembro-me da primeira vez que ela viu uma entrevista minha e a verdade é que ela reagiu muito bem. Ela disse-me: 'Ainda bem que alguém está a falar disto. Na minha altura, nós não sabíamos nada. Que bom que hoje se fala disto'. A minha mãe foi sempre acompanhando o meu trabalho, tal como a minha tia. O núcleo restante da minha família é maioritariamente de mulheres e tenho tido muito apoio da sua parte. Acho que ajuda o facto de elas verem que tenho tido sucesso naquilo que estou a fazer. 

Não podemos esquecer que, apesar do progresso ser imparável, vai tendo pequenos recuos. Quando o progresso acontece, o conservadorismo quer pará-lo

Tal como afirmas orgulhosamente, és uma grande fã do Brasil e consomes muito conteúdo brasileiro. Como interpretas a mentalidade dos brasileiros comparativamente à dos portugueses relativamente aos temas de que falas e até à própria maturidade nas relações?

O que sinto relativamente às diferenças entre estas duas realidades é que os movimentos feministas da América do Sul, e do Brasil em particular, são fortíssimos e já estão noutros patamares comparativamente a nós. Claro que, quando as mulheres falam mais dos seus direitos, isso afeta as relações. Não há como. Quando as mulheres dão um pontapé na porta, abanam a casa.

No entanto, daquilo que vou lendo, também existem movimentos conservadores bastante fortes no Brasil. Movimentos religiosos bastante fortes. Tanto que os números de violência doméstica são altíssimos, os números de violência contra pessoas LGBT também. Portanto, acho que lá o movimento está mais avançado, parece-me que as pessoas têm uma liberdade - talvez mais do que nós - em falar abertamente sobre estes temas. Em Portugal, penso que se tenha começado a falar sobre isto mais tarde. Mas isto é apenas uma percepção, não é uma certeza. 

Não podemos esquecer que, apesar do progresso ser imparável, vai tendo pequenos recuos. Quando o progresso acontece, o conservadorismo quer pará-lo. Por exemplo, tens o direito do aborto aprovado desde 2007, mas volta e meia, alguém diz assim: ‘Se calhar devíamos pensar nisto outra vez’. Se viermos a ter um governo que se vá tornando cada vez mais conservador, não sabemos se esse direito volta atrás. 

Se não houver leis que sustentem estes direitos, esta divisão igualitária, este apoio às mulheres para que elas possam, de facto, emancipar-se, vai ser muito difícil

Achas que as mulheres estão a conseguir atingir o verdadeiro empoderamento feminino e sexual ou, na realidade, ainda há um longo caminho a percorrer?

Há mudanças a acontecer, sem dúvida, mas o caminho é longo. Não sou eu que digo isto, são os números. Faltam entre 120 a 130 anos para atingirmos a igualdade salarial. No que diz respeito às tarefas domésticas, as mulheres continuam a fazer três vezes mais do que os homens. Há um estudo da Fundação Francisco Manuel dos Santos que indica que elas já vão para a relação - se for heterossexual - a assumir que esse será o seu papel. É identitário. Por outro lado, acho que há muita coisa por fazer em termos de leis e de apoios, porque não há como haver igualdade de direitos laborais entre pais e mães, se os dois não tiverem direito a licença de parentalidade. Se é sempre a mulher que vai para casa aquele tempo todo, claro que o empregador vai ter menos interesse em a contratar.

É preciso haver uma divisão igualitária. Se nós partimos do mesmo lugar, não nos tornamos menos interessantes para o empregador ao dizermos que queremos ser mães. E é a nós que perguntam. Já é ilegal fazer isso, mas continuam a fazer. Se não houver leis que sustentem estes direitos, esta divisão igualitária, este apoio às mulheres para que elas possam, de facto, emancipar-se, vai ser muito difícil.

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