A Plataforma Saúde em Diálogo é a única representante de doentes que integra a Comissão Nacional Para a Humanização dos Cuidados de Saúde do Serviço Nacional de Saúde (SNS), que entrou em funções em março.
A IPSS, que representa doentes crónicos, consumidores de cuidados de saúde, promotores e profissionais de saúde, colabora, atualmente, com 72 associações de doentes em Portugal.
Por isso, numa altura em que é cada vez mais premente falar da humanização nos cuidados de saúde, o Notícias ao Minuto esteve à conversa com o presidente da plataforma de forma a perceber o que é necessário mudar no Serviço Nacional de Saúde para dar aos doentes maior dignidade e criar mais empatia.
Jaime Melancia enumera a "carga burocrática sobre os profissionais de saúde", a "falta de vontade política" e "a falta de incentivo à participação cívica" como obstáculos à implementação de uma verdadeira cultura de humanização na Saúde.
Continuamos a ver cidadãos insatisfeitos, inseguros, perdidos no sistema, num labirinto de especialidades, de profissionais de saúde, de instituições que não comunicam entre si
Recentemente realizou-se a conferência anual da Plataforma Saúde em Diálogo e ficou claro que especialistas e os doentes querem o mesmo: "Cuidados de Saúde mais humanizados". Há anos que debatemos sobre isso. O que falta para passar da teoria à ação?
Essencialmente, falta coragem para passar a colocar o doente no centro das políticas de saúde. Quer estejamos a falar de pessoas com doença crónica ou com doença aguda, é preciso tirar partido dos tempos em que vivemos e da inovação tecnológica para melhorar os cuidados prestados ao doente. Se há tecnologia de ponta disponível, esta tem de servir para dar mais tempo ao médico para observar o doente, para o escutar atentamente, perceber o seu contexto social, conhecê-lo melhor e dar-lhe a dignidade que merece. No entanto, continuamos a ver cidadãos insatisfeitos, inseguros, perdidos no sistema, num labirinto de especialidades, de profissionais de saúde, de instituições que não comunicam entre si. Estaremos nós a tirar verdadeiramente partido da tecnologia e do fluxo de informação para humanizar os cuidados que prestamos ao outro, seja doente, cuidador ou profissional?
Quais os principais obstáculos que têm condicionado essa implementação?
São vários os obstáculos que, atualmente, têm condicionado a implementação de uma verdadeira cultura de humanização, entre os quais: a carga burocrática sobre os profissionais de saúde e a consequente falta disponibilidade/tempo dos profissionais de saúde para estabelecerem relações de confiança e de empatia com os utentes e comunicarem de forma efetiva; a falta de vontade política para mudar o paradigma do financiamento das unidades de saúde - que continua a priorizar o volume de cuidados prestados em detrimento do acesso e da qualidade dos mesmos; a atitude paternalista por parte das instituições e dos profissionais que afasta os cidadãos de se envolverem nas suas próprias decisões de saúde; a falta de incentivo à participação cívica e a carência de uma cultura participativa no sistema de saúde – tudo isto são obstáculos que interessa analisar e mitigar para continuarmos a trilhar este caminho rumo a uma saúde mais humanizada. É, por isso, preciso passar da teoria à ação. Sabemos que várias unidades locais de saúde (ULS) já têm comissões de humanização e que se preocupam verdadeiramente com o assunto, mas há um longo caminho a fazer para tornar esta uma prioridade em todo o sistema de saúde.
Há falta de incentivos para que isso aconteça?
A Comissão Nacional para a Humanização dos Cuidados de Saúde no SNS foi criada em março deste ano para promover uma cultura de humanização dos cuidados de saúde em Portugal. Deste então, iniciou-se um importante trabalho no âmbito do levantamento dos departamentos de humanização existentes nas instituições de saúde, dando-se a conhecer as boas práticas já em curso. A Plataforma Saúde em Diálogo representa as associações de doentes nesta comissão e tem-se empenhado, desde o primeiro momento, em contribuir positivamente para a promoção e valorização da humanização nos cuidados de saúde prestados aos utentes, uma vez que daqui resultam ganhos de qualidade e eficiência, que advêm de uma prestação de cuidados de saúde centrados na pessoa. O trabalho desenvolvido na comissão é essencial, contudo, é preciso que este compromisso seja transversal e valorizado pelas entidades públicas competentes.
Implementar boas práticas de humanização não chega, há que medir o seu impacto nos doentes, na sua adesão ao tratamento, na sua confiança no sistema, e também nos profissionais, na sua motivação, na sua saúde mental, e, claro, nos ganhos para o sistema
Porque é que a humanização ainda não é uma prioridade em Portugal?
A humanização ainda não é uma prioridade em Portugal. Ainda não se reconhece o seu valor para o doente e para o sistema de saúde, mesmo em termos de sustentabilidade. Daí ser importante produzir-se evidência sobre o tema e divulgá-la. Implementar boas práticas de humanização não chega, há que medir o seu impacto nos doentes, na sua adesão ao tratamento, na sua confiança no sistema, e também nos profissionais, na sua motivação, na sua saúde mental, e, claro, nos ganhos para o sistema. Só assim se reconhece o seu valor. Todos nós somos potenciais pilares para a humanização, basta seguirmos os bons exemplos. E se os órgãos de gestão das unidades de saúde estiverem mais sensibilizados para o tema, talvez seja mais fácil motivar as equipas, os profissionais.
A humanização deve ser uma prioridade nas políticas de saúde pelos ganhos para as pessoas, mas também pelos ganhos económicos. Não podemos falar em sustentabilidade do sistema de saúde sem olhar para a forma como estamos a prestar cuidados aos doentes.
É necessário despender então de tempo. Uma das questões fundamentais para mudar esta visão é ter mais profissionais de saúde?
Não só são necessários mais profissionais de saúde como é necessário otimizar o seu dia a dia, libertá-los de tarefas burocráticas que não acrescentam valor e dar-lhes espaço e tempo para um atendimento focado na pessoa, aproveitar melhor a inovação tecnológica em prol do doente e dos profissionais. Ao melhorar as suas condições de trabalho teremos certamente profissionais mais felizes, mais empáticos e mais conscientes.
Que benefícios traz a empatia e a compaixão nos cuidados de saúde?
A empatia é o grande desafio na humanização dos cuidados de saúde. A evidência científica vem demonstrando que a empatia e a compaixão têm ganhos significativos na vida do doente, nomeadamente no que diz respeito ao seu impacto clínico, à satisfação do doente, bem como maior segurança nos cuidados prestados, maior adesão à terapêutica, uma diminuição nas readmissões hospitalares, nos custos, e maior confiança na instituição. Por outro lado, resulta numa maior satisfação dos médicos, contribuindo para a diminuição do burnout. Resumindo, isto traduz-se em valor não só para o doente, mas para todo o sistema de saúde.
Em breve será publicado um livro que reúne as boas práticas de humanização de 20 unidades de saúde. O que já se sabe sobre o mesmo?
Durante a conferência anual da Plataforma Saúde em Diálogo, o presidente da Comissão Nacional para a Humanização dos Cuidados de Saúde no SNS, Fernando Regateiro, fez de facto esse anúncio. Este livro com a compilação de boas práticas nas ULS será um grande passo para começarmos a sistematizar e dar palco aos bons exemplos de humanização, contribuindo para que possam ser replicados por todo o país e para criar um movimento verdadeiramente nacional.
Quais são os principais pilares da promoção da cultura de humanização na Saúde?
De acordo com o nosso preletor na Conferência, o Presidente do Conselho Nacional de Saúde, Victor Ramos, são três os pilares instrumentais para a promoção de uma cultura de humanização: a partilha de informação em saúde, promoção da participação cidadã e a medição sistemática da experiência e dos resultados percecionados pelos doentes, destacando ainda a avaliação dos dirigentes e a formação contínua dos profissionais de saúde, como instrumentos auxiliares fundamentais para se alcançar esse desígnio.
Quem vive a mais de 100 quilómetros de distância de um hospital não deveria ter de deslocar-se frequentemente, em táxi ou viatura própria, só para ir buscar a sua medicação habitual ao hospital
O que pensa sobre o regime de dispensa em proximidade de medicamentos e outros produtos de saúde prescritos para ambulatório hospitalar, no âmbito dos estabelecimentos e serviços do SNS, aos quais compete garantir a prestação de cuidados hospitalares?
A dispensa de medicamentos em proximidade é uma das grandes reivindicações da Plataforma Saúde em Diálogo e que, segundo as estimativas do Governo, irá beneficiar cerca de 200 mil doentes que não precisarão de deslocar-se aos hospitais para adquirirem a medicação de que precisam no dia-a-dia. Esta é, sem dúvida, uma medida justa e necessária que peca por tardia, uma vez que tem impactado a qualidade de vida de muitos cidadãos com doença crónica, seus cuidadores e familiares.
Quem vive a mais de 100 quilómetros de distância de um hospital não deveria ter de deslocar-se frequentemente, em táxi ou viatura própria (porque nem sempre há transporte públicos disponíveis), só para ir buscar a sua medicação habitual ao hospital, ausentando-se do trabalho ou deixando de cuidar do seu familiar. Mais do que uma comodidade, a dispensa de medicamentos em proximidade é uma questão de justiça para milhares de doentes crónicos, garantindo-lhes o direito ao tratamento sem o fardo da distância e dos custos que muitas vezes lhes são imputados. E isto é também, sem dúvida, uma medida que promove a humanização dos cuidados de saúde.
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