Guterres discursava perante a Assembleia-Geral das Nações Unidas (ONU), que hoje assinala o Dia Internacional em Memória das Vítimas da Escravidão e do Tráfico Transatlântico de Escravos, e recordou que por mais de quatro séculos, africanos foram "escravizados, sequestrados, traficados, desumanizados, abusados e explorados".
"A profundidade e a escala da crueldade, desumanidade e depravação dessa prática são incompreensíveis. Assim também é o sofrimento, o medo, a dor e a miséria suportados por milhões de pessoas exploradas por lucro", afirmou, admitindo que os impactos resultaram em famílias dilaceradas e comunidades dizimadas.
"Lamento profundamente que vários países --- incluindo o meu --- se tenham envolvido nesse comércio imoral", sublinhou Guterres, referindo o papel de Portugal nesse sistema.
O ex-primeiro-ministro português criticou o comércio "movido pela ganância e construído sobre mentiras --- particularmente a mentira da supremacia branca -, um comércio possibilitado por seguradoras, banqueiros, companhias de navegação, sistemas legais e muito mais, que viu indivíduos, instituições e corporações acumularem riquezas inimagináveis às custas do sofrimento humano".
O líder da ONU lembrou que quando a escravidão foi oficialmente abolida, não foram os escravizados que foram compensados, mas sim os escravizadores, que receberam reparações equivalentes a milhares de milhões de dólares.
"Numa reviravolta ainda mais cruel, alguns escravos foram forçados a pagar indemnizações", lamentou Guterres na cerimónia.
Numa reflexão sobre a atualidade, o secretário-geral afirmou que os legados duradouros da escravidão e do colonialismo ainda estão presentes no mundo e pediu que se fortaleça a luta contra esses males.
"Os lucros obscenos derivados da escravidão e as ideologias racistas que sustentavam o comércio ainda estão connosco. O racismo sistémico foi incorporado em instituições, culturas e sistemas sociais. E a exclusão profundamente enraizada, a discriminação racial e a violência continuam a minar a capacidade de muitas pessoas de ascendência africana de prosperar e atingir o seu potencial máximo", reforçou.
Guterres afirmou que graças ao trabalho incansável de líderes e comunidades afetadas, algumas instituições e Estados estão a tomar medidas para reconhecer e abordar os impactos do seu passado colonial.
"É um começo. Mas precisamos de muito mais", frisou.
Além de instar os países a cumprir as suas obrigações internacionais, Guterres pediu que os líderes empresariais promovam a igualdade e combatam o racismo e que a sociedade civil continue a pressionar por justiça e se posicione contra o racismo onde e quando surgir.
Na cerimónia de hoje na sede da ONU, em Nova Iorque, esteve também presente Salome Agbaroji, uma jovem norte-americana filha de pais nigerianos e vencedora do Prémio Nacional de Poesia Jovem de 2023, que lembrou que "a segregação, a gentrificação e a discriminação habitacional em todo o mundo contribuem insidiosamente para as disparidades raciais".
Agbaroji comparou essas atitudes a "sistemas de racismo institucionalizado patrocinados pelo Estado" e observou que muitas pessoas negras como ela são "desqualificadas pela cor da pele antes mesmo de colocarem os pés na porta, assumindo a sua incompetência".
Também o escritor nigeriano Wole Soyinka (vencedor do Prémio Nobel de Literatura em 1986) participou no evento e fez um discurso mais literário, sugerindo que a escravidão deveria ser sempre lembrada através de exposições dinâmicas que destaquem o que significou como "história interrompida de um continente (África)".
Essas exposições, que chamou de "o navio da escravidão" --- já que teriam um caráter itinerante, de capital em capital ---, não deveriam apenas recolher objetos saqueados do continente africano, mas também estar abertas às criações da "diáspora africana".
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