"Estamos melhor do que estávamos há 10 anos mas, apesar dessa melhoria, estamos muito atrasados em relação ao que é preciso." Quem o assegurou foi a presidente da Associação Portuguesa de Cuidados Paliativos (APCP), Catarina Pazes, e os dados estão do seu lado. É que, de acordo com o relatório do Observatório Português dos Cuidados Paliativos (OPCP) referente a 2022, naquele ano estavam em falta 39 médicos, 246 enfermeiros, 19 psicólogos e 18 assistentes sociais.
Mas há mais: ao fim de uma década da promulgação da Lei de Bases dos Cuidados Paliativos e da consequente criação da Rede Nacional de Cuidados Paliativos (RNCP), apenas 30% dos portugueses tem acesso a estes serviços.
Na ótica da enfermeira, o problema passa pela "estagnação da implementação de várias medidas que têm sido planeadas e apresentadas pela Comissão Nacional de Cuidados Paliativos", tendo apelado, por isso, a "um olhar estratégico e atento da parte do Ministério da Saúde" perante a RNCP, que tem "de ser muito mais flexível e de mais fácil acesso, quaisquer que sejam as necessidades que as pessoas tenham".
Isto porque, conforme alertou em conversa com o Notícias ao Minuto, "os doentes com necessidades a nível paliativo não estão a ter a resposta de que precisam e, não tendo, estão nos serviços de urgência e nos hospitais", o que, a longo prazo, dará origem a uma situação "incomportável" no Serviço Nacional de Saúde (SNS).
Estamos melhor do que estávamos há 10 anos mas, apesar dessa melhoria, estamos muito atrasados em relação ao que é preciso. Continuamos a ter o problema dos 30%, o problema do escasso conhecimento sobre os cuidados paliativos pelos profissionais de saúde, e pela população no geral
Dez anos após a criação da RNCP, apenas 30% dos portugueses têm acesso a estes serviços. A que se deve este panorama?
Deve-se a uma estagnação da implementação de várias medidas que têm sido planeadas e apresentadas pela Comissão Nacional de Cuidados Paliativos. A própria lei de 2012 foi regulamentada em 2017. Portanto, houve sempre muita estagnação no que tem respeitado à implementação de mudanças significativas para este incremento do acesso a cuidados paliativos especializados. Mesmo assim, em 2017, quando a lei foi regulamentada e foi criada a Comissão Nacional de Cuidados Paliativos, quando o primeiro plano estratégico foi avaliado, percebemos que estávamos muito aquém dos objetivos.
O que pedimos ao Governo e ao Ministério da Saúde é para passar para o terreno o que já são medidas planeadas e conhecidas. Precisamos disso para ontem, porque as necessidades aumentam. Estamos melhor do que estávamos há 10 anos mas, apesar dessa melhoria, estamos muito atrasados em relação ao que é preciso. Continuamos a ter o problema dos 30%, o problema do escasso conhecimento sobre os cuidados paliativos pelos profissionais de saúde, e pela população no geral. Já começamos a ouvir falar mais, mas continuamos com muitas dúvidas, muito ruído no que é a informação clara sobre o assunto, e isso significa que tem havido uma estagnação nas políticas.
Naturalmente que, havendo a situação de inevitabilidade de a doença agravar e de o fim da vida chegar, os cuidados paliativos estão nessa fase de uma forma mais presente e mais permanente. Nesse sentido, acabam por estar ligados sempre àquilo que não queremos pensar
Vivemos numa sociedade que tem medo de falar sobre a morte e que prefere apoiar-se nas bengalas da positividade tóxica e do "vai ficar tudo bem". Poderá ser esta a base da incompreensão dos cuidados paliativos enquanto especialidade médica?
Sim. Por um lado, o conhecimento sobre cuidados paliativos está desfasado da realidade desta área especializada da saúde. Os cuidados paliativos são uma área especializada da saúde que alivia o sofrimento que decorre de doenças graves, independentemente da fase em que a pessoa se encontre. Portanto, estão ligados a momentos de crise que as pessoas atravessam quando têm uma doença, e esses momentos de crise acontecem ao longo do percurso da doença e no fim da vida.
Os cuidados paliativos estão, e devem, estar presentes ao longo do percurso, sempre que há situações de crise. Naturalmente que, havendo a situação de inevitabilidade de a doença agravar e de o fim da vida chegar, os cuidados paliativos estão nessa fase de uma forma mais presente e mais permanente. Nesse sentido, acabam por estar ligados sempre àquilo que não queremos pensar.
Os cuidados paliativos estão ligados aos momentos de crise, aos momentos de más notícias, aos problemas que sabemos que existem, mas que gostamos de pensar que não existem. Somos todos coniventes neste faz de conta em termos de sociedade, com as expressões "vai ficar tudo bem". É como quem diz, "não quero falar sobre esse assunto e sobre a notícia que é má, por isso vamos fingir que está tudo bem, para nos protegermos deste momento de tristeza". Mas, no fundo, quem está a sofrer não deixa de sofrer por causa deste discurso mentiroso ou que quer disfarçar a tristeza.
Percebermos como as crises acontecem na vida mas, sendo apoiadas e suportadas do ponto de vista clínico de uma forma rigorosa e adequada aos cuidados que cada pessoa precisa em cada momento, podem ser muito mais leves e podemos, de facto, viver em pleno, apesar de haver uma doença
Quando volto a encontrar pessoas acompanhadas por nós, dizem, "espero não voltar a precisar de vocês". E eu normalmente digo, "se por acaso precisar, ainda bem que pode contar com este apoio". Normalmente, o que é mais fácil é pensar que não é preciso, porque é um tema que não é apelativo para a sociedade em geral, ou não tem sido, e temos de o facilitar.
Percebermos como as crises acontecem na vida mas, sendo apoiadas e suportadas do ponto de vista clínico de uma forma rigorosa e adequada aos cuidados que cada pessoa precisa em cada momento, podem ser muito mais leves e podemos, de facto, viver em pleno, apesar de haver uma doença. E não é só o doente que está em causa, é também quem está à volta dele. O suporte que uma equipa especializada pode dar a uma família faz muita diferença. É importante para o doente e para a família saberem que existe uma equipa com quem podem contar sempre que existe um problema.
É preciso um olhar estratégico e atento da parte do Ministério para esta Rede de Cuidados Paliativos, que precisa de ser muito mais flexível e de mais fácil acesso, quaisquer que sejam as necessidades que as pessoas tenham
Esta dinâmica, que pode ser mais ou menos notória, faz muita diferença na vivência de uma doença grave. Há outras situações em que o doente está mais dependente e a família não está a conseguir lidar com a situação. O doente, precisando de um internamento, precisa que seja bom a responder às necessidades que surgem. Aí falamos das unidades de cuidados paliativos. Houve aqui algumas situações de evolução que significaram a separação entre as unidades que estavam dentro da Rede Nacional de Cuidados Continuados Integrados e que passaram a pertencer à Rede Nacional de Cuidados Paliativos, o que trouxe algumas dificuldades do ponto de vista do acompanhamento que sentem que não estão a receber, porque não sabem muito bem a quem reportar ou como pedir apoio.
Ou seja, é preciso um olhar estratégico e atento da parte do Ministério para esta Rede de Cuidados Paliativos, que precisa de ser muito mais flexível e de mais fácil acesso, quaisquer que sejam as necessidades que as pessoas tenham. Tem de significar um planeamento muito mais centralizado no doente e na família.
O apoio psicossocial tem de contar com uma intervenção especializada do ponto de vista do psicólogo e do assistente social. Essa é outra enorme dificuldade que o relatório do Observatório Português de Cuidados Paliativos mostra, uma vez que muitas das equipas não têm apoio de um psicólogo, nem de um assistente social
Como lidam de perto com a morte, lidam, também, com o luto dos entes queridos do doente. Qual é o papel dos especialistas em cuidados paliativos nesta esfera?
Esse cuidado dirigido às necessidades psicossociais que envolve a doença tem de ser uma preocupação de toda a equipa multidisciplinar, a partir do primeiro momento em que conhece o doente e a família. Como é que está a lidar com toda a situação, com as perdas ou mudanças que trouxe, e como é que planeia lidar com o que vai surgindo? O apoio psicossocial tem de contar com uma intervenção especializada do ponto de vista do psicólogo e do assistente social. Essa é outra enorme dificuldade que o relatório do Observatório Português de Cuidados Paliativos mostra, uma vez que muitas das equipas não têm apoio de um psicólogo, nem de um assistente social.
Não havendo psicólogos capacitados para trabalhar nesta área, disponíveis e com horas alocadas para prestar cuidados a estas pessoas, não podemos garantir uma resposta multidisciplinar adequada, especializada e de qualidade que as pessoas precisam e merecem. Como é que se faz? Faz-se com atenção aos pormenores, às dificuldades, às vivências que as pessoas estão a ter desde o momento em que as acompanhamos, perguntando como é que está a ser, dando espaço e tendo as condições para que as pessoas possam viver a situação da forma mais positiva possível, mas isto faz-se em equipa. Não são só médicos e enfermeiros que fazem, e não podem ser.
Dizermos que temos equipas não significa que temos acesso e isso é grave, porque criamos a expectativa na população. Ainda por cima, queremos que a população esteja informada sobre os cuidados paliativos e, estando informada, vai esperar qualidade e uma resposta adequada. Mas, depois, isso entra em contradição com o que, na verdade, têm acesso.
Muitos dos doentes com necessidades a nível paliativo não estão a ter a resposta de que precisam e, não tendo, estão nos serviços de urgência, nos hospitais, a receber cuidados que não são os mais adequados naquele momento. Se não houver um investimento urgente e agora, vamos continuar a aumentar esta situação e vai ser incomportável
As equipas são exíguas, têm vários profissionais que não estão a tempo inteiro, têm profissionais que não têm a formação que deveriam de ter. Temos várias questões que mostram que não tem havido uma priorização da área no sentido não só de criar equipas, mas de garantir que estas equipas tenham a qualidade que os doentes e as famílias merecem. Estas equipas têm um grande impacto para os doentes e para as famílias, e para os contextos onde vão exercer, porque vão ajudar os outros profissionais a adequar as suas práticas.
São mudanças de que precisamos enquanto sociedade e enquanto país, porque senão não vai haver forma de termos futuro para o SNS. O SNS está assoberbado, com tanta dificuldade em responder às necessidades, e a ser usado de uma forma ineficiente. Muitos dos doentes com necessidades a nível paliativo não estão a ter a resposta de que precisam e, não tendo, estão nos serviços de urgência, nos hospitais, a receber cuidados que não são os mais adequados naquele momento. Se não houver um investimento urgente e agora, vamos continuar a aumentar esta situação e vai ser incomportável.
O fim da vida é inevitável, ele acontece, e vamos perder pessoas importantes na nossa vida. Não é possível passarmos pela vida sem perder ninguém. Portanto, esse processo ficará muito menos difícil e será muito mais vivido, pleno e transformador do ponto de vista humano se tivermos uma equipa multidisciplinar que nos vá apoiando
Esse suporte ao longo do percurso e, sobretudo, na fase mais final da vida, à família e ao doente, [facilita] que as tarefas de luto possam ser feitas de uma forma muito mais natural e que as pessoas possam ser ajudadas. O papel da equipa é facilitar, é alertar que é importante não deixarmos nada por dizer, ter oportunidade para estarem juntos. Se houver emoção, não significa que seja negativo; significa que estão a partilhar um momento difícil. Se chorarem juntos, vai tornar-se mais fácil. Ter alguém que seja capaz de fazer este apoio vai ter um impacto muito positivo no luto; isso está estudado.
Quando passamos por alguma situação, é mais fácil de compreender o que estamos a dizer. O fim da vida é inevitável, ele acontece, e vamos perder pessoas importantes na nossa vida. Não é possível passarmos pela vida sem perder ninguém. Portanto, esse processo ficará muito menos difícil e será muito mais vivido, pleno e transformador do ponto de vista humano se tivermos uma equipa multidisciplinar que nos vá apoiando.
É muito penoso para quem sabe que isto pode ser diferente e que pode ser uma vivência positiva, apesar de dolorosa, e saber ao mesmo tempo que a maior parte das pessoas não tem acesso a isso. A maioria parte das pessoas passa por todos estes processos de uma forma desacompanhada ou acompanhada, mas não na totalidade. Há um acompanhamento, há profissionais de saúde que estão preocupados com a situação mas, não havendo treino para conversar sobre estes assuntos, a competência para ajudar a lidar com estas situações, faz com que a vivência não seja tão positiva, plena ou humanizada, o que traz situações de luto mais difíceis.
O papel dos cuidados paliativos na inversão deste processo do ponto de vista mais humanizado, de perceber que a morte faz parte da vida, é muito importante. Mas se as equipas não existirem e não estiverem acessíveis, nomeadamente na área da comunidade, não é fácil pensar na possibilidade de ficar em casa, o que leva à inevitabilidade do recurso ao hospital
Antes, era comum morrer em casa, entre os familiares. Agora, é normal morrer no hospital, muitas vezes sozinho. Ainda assim, Portugal está em sentido contrário, uma vez que, segundo um estudo publicado no início deste ano, os restantes países analisados registaram um aumento no número de mortes em casa. A que se deve esta diferença?
Hospitalizou-se a morte e hospitalizou-se o fim da vida. Ou seja, normalizou-se essa condição de que, se está no fim de vida, tem de estar no hospital. Ao longo do tempo, desenvolveram-se tantas técnicas e intervenções que mostraram um impacto grande no tempo de sobrevida, que as pessoas e as própria medicina se convenceram de que a morte era evitável. O papel dos cuidados paliativos na inversão deste processo do ponto de vista mais humanizado, de perceber que a morte faz parte da vida, é muito importante. Mas se as equipas não existirem e não estiverem acessíveis, nomeadamente na área da comunidade, não é fácil pensar na possibilidade de ficar em casa, o que leva à inevitabilidade do recurso ao hospital.
Internacionalmente vemos que houve um aumento das mortes em casa em vários países, mas em Portugal até houve uma inversão. Isso significa que estamos a afastar-nos das boas práticas e do que as recomendações internacionais nos dizem: temos de descentralizar os cuidados do hospital, porque não é possível, em termos de sustentabilidade do SNS, mas também porque as pessoas precisam desse investimento para ter uma vivência das situações de crise que a doença traz de uma forma muito mais positiva. É possível e, enquanto, sociedade é isso que temos de exigir.
Havendo um investimento agora, vamos conseguir reduzir custos em saúde, melhorando as respostas que temos, o que se traduz na eficiência de que tanto precisamos
Em junho, a Associação Portuguesa de Cuidados Paliativos exigiu um "investimento urgente" nesta área no Serviço Nacional de Saúde. Que abertura é que recebeu por parte do Ministério da Saúde?
A resposta que tivemos foi essa reunião acontecer. Queríamos muito ter esse momento de estar face a face com quem tem responsabilidade a nível de organização e planeamento dos cuidados de saúde, e essa reunião foi importante. Não houve compromissos concretos de medidas que vão ser tomadas, – isso não era possível, nem era esse o propósito da reunião –, mas houve da parte do Ministério disponibilidade para ouvir, para tomar notas, para perceber quais são as preocupações e as soluções de mudança e de pôr em prática o que está planeado. No fundo, o que precisamos é que haja condições para os planos estratégicos serem uma realidade e só o Ministério da Saúde as pode dar.
Depois de os planos estratégicos estarem aprovados, é preciso que os conselhos de administração das unidades de saúde tenham a indicação de que aquilo é prioritário e é preciso cumprir. É preciso haver essa mudança e esse reconhecimento. Demonstrámos o que poderia significar para o SNS um maior investimento em cuidados paliativos do ponto de vista da satisfação dos doentes e das famílias, dos profissionais, e económico. Havendo um investimento agora, vamos conseguir reduzir custos em saúde, melhorando as respostas que temos, o que se traduz na eficiência de que tanto precisamos.
O "bilhete de identidade" prometido em 2020 pela então ministra da Saúde, Marta Temido, não entrou em vigor. Considera que poderá, eventualmente, vir a ser aplicado? Se sim, qual a sua importância?
Tem toda a importância. Precisamos de saber, momento a momento, como é que estamos a nível do acesso a cuidados paliativos, e a população precisa de saber quais são as equipas que funcionam e que tipo de recursos têm. Essa informação tem de ser muito transparente. Haver esse BI dos cuidados paliativos vai facilitar o planeamento, vai tornar o planeamento passível de ser avaliado com a periodicidade adequada e vai tornar possível perceber como estamos. Uma grande parte da atividade das equipas provavelmente não é conhecida porque não está registada, mas há possibilidade de pensarmos em estratégias para que isso seja abreviado. Precisamos muito de ter esse BI para percebermos em que ponto estamos.
O privilégio de quem trabalha nesta área é enorme, porque temos a oportunidade de nos tornarmos um pouco mais humanos. A intensidade das experiências que vivemos transforma a nossa vida e aprendemos muitíssimo com cada doente e com cada família. Aquela pessoa sou eu. Aquela pessoa hoje serei eu um dia
No ano passado, conversei com Ana Catarina Infante, enfermeira e fundadora da Comunidade Doulas do Fim da Vida, que apontou que "falar da morte é trazer-nos à vida" e "lutarmos por aquilo que é realmente viver bem até morrer". Considera que esta é uma boa descrição para os cuidados paliativos?
É a consciência da finitude que nos torna mais humanos, mais capazes de ser tolerantes, mais capazes de relativizar e de priorizarmos o que é essencial na vida. Essa consciência é-nos permitida de uma forma mais permanente quando trabalhamos nestas áreas, quando atendemos pessoas que têm a sua vida ameaçada por uma doença. Normalmente, entendemos essa consciência de forma negativa, quando é o doente a senti-lo: "Porquê eu, não merecia, tenho tanta coisa para viver." Tudo isso é difícil e temos a humildade de perceber que só quem está a viver naquele momento é que sabe como é que aquilo está a ser difícil.
Mas, ao mesmo tempo, sabemos que tudo aquilo pode trazer também coisas muito positivas para a vida, nomeadamente essa capacidade de priorizar, de relativizar, de sermos mais humanos. O privilégio de quem trabalha nesta área é enorme, porque temos a oportunidade de nos tornarmos um pouco mais humanos. A intensidade das experiências que vivemos transforma a nossa vida e aprendemos muitíssimo com cada doente e com cada família. Aquela pessoa sou eu. Aquela pessoa hoje serei eu um dia.
Ao fim de várias tentativas, a lei que regula a morte medicamente assistida foi promulgada pelo Presidente da República, há cerca de um ano. Antes, o investigador belga Joachim Cohen, do Grupo de Investigação sobre Cuidados de Fim de Vida, argumentou que "os cuidados paliativos e a eutanásia não são, necessariamente, antagonistas" e que, eventualmente, poderão ser integrados até certo ponto, uma vez que responderam da mesma forma ao afastamento da sociedade e à hospitalização da morte. Concorda com esta ideia?
Os cuidados paliativos e a eutanásia não são antagónicos, isso concordo. Nem sequer é possível meter os cuidados paliativos e a eutanásia na mesma frase em termos de conceitos. Os cuidados paliativos são uma especialidade clínica que trata e previne sofrimento que decorre de doenças graves. A eutanásia é uma intervenção que tem como objetivo antecipar a morte a pedido do próprio. Não é possível dizer ‘ou queres isto ou aquilo’. Cuidados paliativos é o que precisamos de querer e de ter acesso sempre, independentemente da nossa vontade em relação ao fim da vida. Tenho direito e devo ter direito a cuidados paliativos.
A minha preocupação em relação à eutanásia em Portugal tem que ver com o ponto de situação em que estamos em relação ao acesso ao alívio do sofrimento e a cuidados paliativos. Conheço muitas pessoas em sofrimento e tenho forma de ajudar essas pessoas, mas também sei que a maior parte das pessoas que está como os doentes que conheço não têm acesso a isso. Estamos a falar de 70%, milhares de pessoas. Falando desse contexto que vivemos, para mim fica difícil de concordar com a lei agora, porque podemos estar a empurrar para uma intervenção pessoas que não a quereriam se tivessem acesso a cuidados adequados.
Enquanto profissional de saúde, preocupa-me que a sociedade caminhe nesse sentido, não havendo uma efetiva priorização das políticas. Ao mesmo tempo que se discute a eutanásia no Parlamento e que houve um incremento tão forte em fazer passar a lei, não houve uma priorização política na área dos cuidados paliativos e um efetivo cumprimento do plano delineado.
A lei tem de ser pensada e refletida, a bem de todos, para que quem quer tenha acesso, mas também para quem está numa situação de maior fragilidade e vulnerabilidade não se veja fragilizado ainda mais por haver essa possibilidade. Ou seja, havendo essa possibilidade, pessoas que não querem ou que nunca quiseram verem-se de alguma forma empurradas para aí porque não têm alívio
É preciso acabar com essa dicotomia em termos de discurso. Os cuidados paliativos são uma prioridade para todos. A questão na nossa perspetiva em relação à lei ou em relação àquilo que queremos ou não queremos no fim da vida é um assunto diferente. Quando misturamos os dois conceitos numa discussão estamos a confundir as pessoas e não estamos a fazer um bom serviço público. A discussão sobre a lei da eutanásia não pode colocar nunca pessoas a dizer se são contra ou a favor cuidados paliativos.
A Associação fez um estudo que vai divulgar em breve sobre a perceção dos profissionais de cuidados paliativos sobre a lei e os próprios profissionais que lidam com a morte, com o fim da vida, com pessoas que estão em sofrimento, não têm facilidade em se posicionar relativamente à lei, incluindo do ponto de vista dos conceitos. A lei não é clara em algumas coisas e, do ponto de vista deontológico e ético, levanta-nos questões, independentemente de sermos a favor ou contra.
A lei tem de ser pensada e refletida, a bem de todos, para que quem quer tenha acesso, mas também para quem está numa situação de maior fragilidade e vulnerabilidade não se veja fragilizado ainda mais por haver essa possibilidade. Ou seja, havendo essa possibilidade, pessoas que não querem ou que nunca quiseram verem-se de alguma forma empurradas para aí porque não têm alívio. Precisamos de uma boa regulamentação, que é difícil, mas também de priorizar os cuidados adequados para as pessoas. Isso tem de ser uma luta de todos nós.
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Sob o mote 'Integrar cuidados, consolidar pontes', o XI Congresso Nacional de Cuidados Paliativos e o II Congresso Internacional da APCP decorre entre os dias 10 e 12 de outubro, na Universidade de Aveiro, pretendendo focar-se "nas áreas da medicina que se cruzam diariamente com os cuidados paliativos".
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