Sabendo da dificuldade que é sentir que se pode estar só na luta contra a endometriose e adenomiose, Susana Fonseca fundou a MulherEndo, a Associação Portuguesa de Apoio a Mulheres com Endometriose.
Tendo em conta que estas são doenças muito "únicas" e que impactam de forma diferente cada mulher, a MulherEndo tem como objetivo principal promover e fomentar o apoio, a reabilitação e/ou a recuperação física e psicológica destas doentes, não só através da informação, mas também de cooperação direta, sempre indo ao encontro "da necessidade" de cada paciente.
Ao Notícias ao Minuto, Susana Fonseca fala-nos sobre patologias dominadas pela "dor", numa sociedade onde "ainda existe muito a cultura" de que a dor é normal entre as mulheres. Considerado que estes "preconceitos" acabam por ser "transversais à sociedade médica", a presidente da MulherEndo acredita que a mudança só ocorrerá com a "renovação geracional".
O desconhecimento em torno das doenças leva ao atraso no diagnóstico, essencial para aquele que será o "trajeto da vida da mulher", as listas de espera são longas e a medicação não é comparticipada. Foi recomendado ao Governo que elaborasse uma estratégia nacional para a endometriose, mas, um ano depois, pouco mudou.
Susana Fonseca considera que se está a gastar "gastar mais em cuidados ditos paliativos" da endometriose e adenoniose, do que a tratar as patologias de "raiz".
Interrogada sobre se esta é uma luta prejudicada por afetar apenas mulheres, não tem dúvidas: "Se os homens experienciassem a endometriose da mesma forma que as mulheres, já se sabia porque é que ela existe, já havia cura".
Começou a falar-se mais sobre endometriose nos últimos anos, ainda assim, continua a haver uma incógnita em torno da doença. Consegue explicar, de uma forma sintética, do que se trata?
A endometriose é quando um tecido semelhante ao nosso endométrio - o endométrio é o tecido interno do útero que, mensalmente, descama e dá origem à menstruação -, que se comporta de uma forma similar ao endométrio, que pode estar alojado em qualquer parte do nosso corpo e que, sob influência das nossas hormonas, do nosso ciclo hormonal, vai também ter sangramentos e causar inflamação nos locais onde está alojada.
Há pouco tempo dizia-se que esse tecido era endométrio que saía e que se ia alojar em determinados locais, mas, em 2022, saíram as 'guidelines' mais recentes sobre a endometriose e já está comprovado que não é endométrio, mas sim um tecido que é muito similar ao endométrio e que se comporta de uma forma também similar ao próprio endométrio e que é autossuficiente, no fundo. Por isso é que há casos de endometriose pós-menopausa, pós-histerectomia total [retirada do útero], etc.
É muito usual quem é diagnosticado com endometriose também poder ter adenomiose e quem tem adenomiose poder ter endometriose
Quero abordar essa questão da menopausa, mas, antes disso, e para começarmos também por tirar algumas dúvidas mais comuns, queria questioná-la sobre a adenomiose. Qual a principal diferença entre endometriose e adenomiose? São a mesma coisa?
São doenças diferentes, embora andem muitas vezes em conjunto. E é muito usual quem é diagnosticado com endometriose também poder ter adenomiose e quem tem adenomiose poder ter endometriose. Mas, a adenomiose está só circunscrita ao aparelho reprodutor, ao útero, no miométrio, a camada intermédia do útero, só aí é que pode existir adenomiose.
Os sintomas são muito parecidos, a diferença é que a adenomiose não sai dali daquela zona do útero e tem cura. Lá está, com uma histerectomia, a adenomiose pode ficar resolvida, enquanto a endometriose não.
Geralmente, quais é que são os sintomas mais comuns associados a esta patologia?
Normalmente, o sintoma principal é dor menstrual incapacitante. Porquê? Como este tecido de endometriose tem um comportamento que está associado ao nosso ciclo menstrual e às nossas hormonas, é durante a altura da menstruação que ele vai estar mais ativo e mais reativo e vai provocar uma maior inflamação. Portanto, um dos principais sintomas é, efetivamente, a dor menstrual muito incapacitante.
Depois, temos outros sintomas, como dificuldades, por exemplo, urinárias. Muitas mulheres têm sintomas como se estivessem constantemente com infecção urinária, mas quando fazem uma urocultura não têm presença de bactéria. Ou seja, não é uma infeção, são chamadas falsas infeções urinárias - existe todo o sintoma, mas não há bactéria. Sintomas intestinais, que podem ir desde uma obstipação severa a quadros de diarreia bastante intensos também, a dor nas relações sexuais. Isto pode acontecer porquê? Há os chamados tumores de endometriose - porque este tecido vai-se alimentando e vai crescendo e em alguns locais forma massas compactas, massas grandes, que às vezes têm que ser removidas cirurgicamente. Quando estes tumores são nos ovários são endometriomas, quando são nas outras partes do corpo são chamados tumores de endometriose e, às vezes, existe a formação desses tumores de endometriose, por exemplo, no septo retovaginal aquela zona que está entre a vagina e o nosso reto e, havendo aí um corpo estranho, quando há penetração há dor, muitas vezes, associada a essa penetração. Para além disso, quando existe a adenomiose, existe também a dor na penetração profunda porque ao tocar no útero vai causar dor. Depois, temos outros sintomas como, por exemplo, a infertilidade, que é mais uma consequência, no fundo. Muitas mulheres só descobrem que têm endometriose ou adenomiose quando querem engravidar, não conseguem e vão à procura de um motivo para essa infertilidade.
O principal sintoma é dor, em várias formas
Ou seja, o principal sintoma, no fundo, é a dor.
É dor, exatamente, em várias formas, é dor.
Existe ainda muito a cultura de que a mulher tem de ter dor e que é normal
Um estudo da Sociedade Portuguesa de Ginecologia concluiu que mais de 40% das mulheres com endometriose em Portugal demoram mais de dez anos a serem diagnosticadas devido à desvalorização dos sintomas. Por que é que tanto tempo depois ainda se continua a chegar tarde aos consultórios e a normalizar a dor? É desconhecimento da sociedade ou também da própria comunidade médica?
De ambas. É um reflexo de sociedade que depois acaba por ser transversal à comunidade médica, que também são elementos da nossa sociedade. Estamos muito habituados, ainda do tempo das nossas avós, das nossas mães, a ouvir que ter dor menstrual é normal: 'eu também tinha filha, depois quando casares isso passa, quando engravidares isso passa'. Existe ainda muito esta cultura de que a mulher tem de ter dor e que é normal. E mesmo a dor na relação sexual. Quando a mulher ousa falar que tem dor na relação sexual ainda é objeto de brincadeira, ou porque o parceiro é muito avantajado, ou por outra razão qualquer...isto acontece nos dias de hoje, não se valoriza a dor e isso é cultural. Acho que só vai mudar com a renovação geracional.
Hoje em dia, felizmente, as pessoas mais jovens já têm esta noção, já não aceitam a dor como sendo parte do dia a dia, já falam, já procuram ajuda e as próximas gerações também vão fazê-lo porque já estão a ser informadas nesse sentido. Acho que temos mesmo de deixar os anos fazerem também o seu trabalho, porque é muito difícil mudar estas mentalidades já tão enraizadas e estes preconceitos, que depois acabam por ser transversais também à comunidade médica. Se formos a um médico que saiu da universidade há poucos anos, possivelmente, vai ter outra sensibilidade e já vai perceber que não é normal. Se fomos a um médico já perto dos seus 60, 60 e tal anos, vai dizer: 'oh filha, isso é normal todas as mulheres sempre sofreram, estás a ser piegas'. Isto acontece ainda hoje. É preciso informar, informar, e nós, enquanto associação, cada vez mais, somos convidadas pela comunidade médica a estar presentes em congressos de Medicina Geral e Familiar, de Ginecologia, de Urologia, e passamos esta mensagem e vai ficando a sementinha. Mas, às vezes, não é o suficiente e aí não há muito mais a fazer a não ser preparar as próximas gerações e isso na associação fazemos - fazemos sessões em escolas, a partir do sétimo ano, sobre o ciclo menstrual e sobre a questão da endometriose e adenomiose, para prevenir as jovens de que quando há sintomas que não são normais, e que não devem de ser aceites como tal, têm de procurar ajuda.
Há também um trabalho a fazer para que os próprios médicos de família, os primeiros a ter contacto com estas mulheres, as possam referenciar aos ginecologistas?
Sim, sem dúvida essa é também uma das nossas grandes lutas, nós temos um programa de formação também para unidades de saúde, mas é muito difícil eles receberem-nos.
Enquanto nas escolas fazemos 20, 30 sessões [de sensibilização] por ano, em unidades de saúde fazemos duas ou três, não conseguimos mais do que isso
Porquê?
Não sei… [silêncio]. Mas, ao início, também era nas escolas, atenção. Começámos este trabalho de literacia há uns cinco, seis anos e, ao início, era muito difícil: 'O quê? Virem falar de menstruação? Não, isso é coisa para falar em casa, não é aqui'. Acontecia muito isto. Atualmente não, porque começa a falar-se cada vez mais e há divulgação. Vamos a umas escolas, as outras depois também querem. Mas, nas unidades de saúde ainda é muito difícil conseguirmos ser recebidas. Enquanto nas escolas fazemos 20, 30 sessões por ano, em unidades de saúde fazemos duas ou três, não conseguimos mais do que isso.
O que quer dizer é que, mesmo havendo esta sensibilização para a patologia, ainda há uma barreira?
Há uma barreira, sim. Mas, por outro lado, já há, por exemplo, congressos de especialidade de Ginecologia - este ano estive num - direcionados à Medicina Geral e Familiar. E foi um congresso que teve mais de 800 participantes, portanto, há interesse, mas, se calhar, da parte das direções, das coordenações, ainda não tanto. É um caminho que demora, que tem que se ter muita paciência e persistência.
O facto de se entrar em menopausa não é taxativo de que os sintomas vão todos desaparecer
Vou aproveitar que há pouco falou na questão da menopausa, tendo referido que a mesma não resolve a endometriose. Pode explicar porquê?
Em alguns casos, efetivamente, as doentes têm um controlo de sintomatologia muito maior quando entram em menopausa. O nosso ciclo não está tão ativo, perdemos a parte dos estrogénios, a produção de estrogénio começa a decair na menopausa e isso acaba por ter um impacto positivo na questão da sintomatologia da endometriose e no desenvolvimento e progressão da doença. Contudo, quando os focos da doença estão espalhados por vários locais do corpo e não houve, por exemplo, uma intervenção cirúrgica para os retirar, o facto de se entrar em menopausa não é taxativo de que os sintomas vão todos desaparecer. Se, por exemplo, a doente tiver um tumor no septo retovaginal, esse tumor não vai milagrosamente desaparecer só porque ela entrou em menopausa. Se calhar, a dor pode começar a diminuir gradualmente, mas não quer dizer que vá desaparecer, porque aquele corpo estranho vai-se manter lá. Tudo isto da endometriose ainda está muito envolto em desconhecimento e há muito ainda que tem que ser descoberto.
Posso partilhar, não é segredo, eu fiz uma histerectomia total, entrei em menopausa com 32 anos, porque tinha adenomiose e tinha endometriose e, no meu quadro, uma endometriose tão extensa que já tinha tido duas intervenções cirúrgicas. Achou-se que a histerectomia seria o caminho mais adequado para o alívio dos sintomas e tentar travar um bocadinho a doença. Mas, seis anos depois da histerectomia, eu tive uma suboclusão intestinal provocada por endometriose. Ou seja, a endometriose começou a formar placas em determinada zona do meu intestino e apertou-me o intestino de tal modo que as fezes não passavam. Tive de ir para o bloco operatório, cortar parte do intestino, seis anos depois de estar em menopausa e com uma questão de estradiol muito, muito baixa. Portanto, eu não tinha estrogénio ativo no meu corpo, não fazia reposição hormonal para a questão da menopausa.... Há muito ainda a descobrir, mas é muito importante passar também esta mensagem. Infelizmente, há muitos médicos que não conhecem bem a envolvência da doença e que prescrevem histerectomias a doentes, às vezes, muito cedo. E as doentes até aceitam porque pensam 'ok eu quero ver-me livre disto' e, na verdade, têm de continuar a ter as suas consultas, têm de continuar a ter determinados cuidados e não quer dizer que a histerectomia seja a última cirurgia, que seja o final, efetivamente, da doença.
Não se sabe concretamente como é que a doença se desenvolve, existem várias teorias
E há pessoas mais propensas a desenvolver endometriose?
Ainda não se sabe concretamente como é que a doença se desenvolve, existem várias teorias. Mas, algumas dessas teorias, acreditam que nascemos com um gene que, a determinada altura, um determinado gatilho na nossa vida, seja uma cirurgia, seja uma gravidez - porque também acontece o diagnóstico só após a gravidez - leva a doença a começar a desenvolver-se. Depois, existe também a componente hereditária, ou seja, eu tendo, a minha filha tem uma maior probabilidade de ter também endometriose. Existem muitas vezes irmãs diagnosticadas com endometriose, há aqui um histórico familiar também bastante intenso. E. depois, existem teorias que vão buscar a parte do ambiente, da vida que nós temos, a parte do stress, tudo isso, que pode espoletar a doença e, às vezes, o seu agravamento. Por exemplo, a endometriose é dependente de estrogénios na maioria dos casos, mas nós estamos, diariamente, em contacto com os chamados xenostrogénios, que são idênticos aos estrogénios e comportam-se no nosso corpo como estrogénios e que estão presentes em champôs, em químicos dos alimentos, no ar que respiramos, em todo lado. Tudo isso podem serem fatores que levam algumas mulheres a reunir mais predisposição do que outras para a doença.
Endometriose e infertilidade não são palavras sinónimas
Acabou de me dizer que muitas mulheres só descobrem que têm endometriose depois da gravidez. Isso quer dizer que a endometriose não tem de ser uma sentença de infertilidade?
Não, não. Isso é uma coisa que também gostamos sempre de dizer. Não são [palavras] sinónimas. 30 a 50% das mulheres com endometriose poderão vir a ter problemas de fertilidade. No entanto, dentro dessas 30 a 50%, muitas conseguem tratando a endometriose. É infertilidade porquê? Às vezes, temos trompas obstruídas por focos de endometriose, temos endometriomas de tamanho avultado que impedem o óvulo de se desenvolver... Há fatores que, por causa da doença, podem impactar a fertilidade, mas, quando tratados cirurgicamente consegue-se engravidar de forma natural, sem recurso a PMA [procriação medicamente assistida]. Depois, existem outros casos. Algumas doentes com endometriose têm a reserva ovárica mais diminuída ou têm ovários mais envelhecidos, também acontece, e aí, temos o recurso à PMA. Não há percentagem neste caso, mas há uma grande percentagem que consegue engravidar, seja depois de forma espontânea, seja com recurso à PMA. Quem efetivamente não consegue engravidar, muitas vezes, é porque teve o diagnóstico demasiado tarde. Algumas doentes vão tentar engravidar, por exemplo, aos 35, 36 anos, depois descobrem que têm endometriose, depois têm de fazer o tratamento para endometriose e já têm uma endometriose muito avançada, a reserva ovárica já está diminuída, a qualidade dos óvulos nessa idade também já está mais diminuída. Nesses casos, a probabilidade de reverter a infertilidade é mais diminuta. Já as doentes que são diagnosticadas mais cedo já têm este alerta, estão prevenidas, podem fazer criopreservação, por exemplo, mais cedo, para prevenir estas questões, e às vezes não estão à espera daquilo que a maior parte da sociedade está, que é o momento ideal para engravidar.
O diagnóstico atempado muda tudo.
Sim, sem dúvida, e é isso que nós na Associação referimos sempre. A importância de um diagnóstico precoce pode efetivamente mudar todo o trajeto da vida da mulher, sem dúvida alguma.
Temos alguns deputados bastante alerta e conscientes sobre a endometriose e as limitações provocadas pela doença, mas acho que aquilo que falta é ir por o que nos move a todos, infelizmente, que é a verba, o dinheiro
No ano passado, o Parlamento discutiu uma petição da MulherEndo para a criação de uma estratégia nacional de combate à doença e, mais tarde, foi mesmo apresentada uma resolução que recomendava ao Governo a elaboração de uma estratégia nacional para a endometriose. Mais de um ano depois, nada mudou. Estão também os dirigentes políticos a falhar?
A única coisa que nós conseguimos com essa petição foi a instituição do Dia Nacional da Endometriose e da Adenomiose, mas, em termos práticos, tudo o que envolvia verbas, nada foi aprovado. Foram feitas as recomendações ao Governo, mas até hoje não houve ainda nada que entrasse em vigor.
Nós continuamos em cima do acontecimento, estamos a trabalhar agora com outras associações europeias para ir para o Parlamento Europeu pedir aquilo que não nos estão a dar em Portugal. Às vezes, se vier de cima e se houver diretivas europeias, temos de as cumprir, portanto, às vezes é mais fácil ir um bocadinho mais acima.
Falando dos nossos governantes, temos alguns deputados bastante alerta e bastante conscientes sobre a endometriose e das limitações que são provocadas pela doença, mas acho que aquilo que falta é ir por aquilo que nos move a todos, infelizmente, que é a verba, o dinheiro. Se houver uma conclusão taxativa de que, neste momento, a endometriose é uma doença extremamente cara e que o Governo está a gastar mais em cuidados ditos paliativos da endometriose do que a tratar a endometriose de raiz e bem tratada com diagnósticos precoces, com cuidados adequados, eu acho que aí se chega à conclusão de que não se pode continuar a gerir como tem sido. Neste momento, temos doentes que fazem tratamentos de fertilidade pelo público, em vão, porque não conseguem engravidar, porque não trataram a endometriose antes. Logo aí estamos a gastar verba de todos nós em vão. Temos doentes com absentismo laboral muito elevado porque não conseguem ir trabalhar por causa da doença. Temos várias idas às urgências, vários exames que são feitos, inconclusivos, porque não são feitos com os protocolos adequados para a patologia. Portanto, tudo isto somado, todas estas despesas, estamos a gastar muito mais do que se estivéssemos a dar tratamento condigno a estas mulheres e se tivéssemos equipas adequadas, formadas em alguns hospitais centrais do país, para poder acolher estas doentes e se tivéssemos os médicos de família aptos a fazer esse encaminhamento correto. Falta mesmo fazer contas, porque, infelizmente, é assim em todos os países e sabemos que é assim, mas quando se parar para pensar um bocadinho nesta parte, se calhar, começamos a criar uma estratégia de raiz, que foi isso que pedimos, porque neste momento as mulheres não têm condições.
Os medicamentos não são comparticipados, certo?
Não. Há medicação sem comparticipação. Toda a medicação que é dirigida à doença não é comparticipada e não é sequer possível às farmacêuticas pedirem a comparticipação porque progestágenos não estão incluídos na linha da diretiva. Isso também foi um dos nossos pedidos nessa petição. Portanto, as farmacêuticas nem sequer podem submeter a comparticipação dos medicamentos que são criados, não há comparticipação, não há um acompanhamento multidisciplinar adequado no Serviço Nacional de Saúde.
São pouquíssimos os profissionais de saúde, neste momento, que se mantém no Serviço Nacional de Saúde com capacidade para acompanhar estas doentes
E a espera por consulta de especialidade deve ser longa.
São pouquíssimos os profissionais de saúde, neste momento, que se mantêm no Serviço Nacional de Saúde com capacidade para acompanhar estas doentes e para o tratamento cirúrgico destas doentes. E, às vezes, temos esperas de dois anos para uma cirurgia, o que é impensável. Enquanto não se consegue recuperar a qualidade de vida, a vida fica mesmo em suspenso em muitos casos, a todos os níveis.
Licença menstrual? Era preciso olhar para a a endometriose e para adenomiose de forma individual
Continuam a ser chumbados diplomas que preveem mais direitos laborais e assistenciais a estas pacientes. Uma licença menstrual faria, realmente, diferença na vida destas doentes?
Faria a diferença, mas no caso da endometriose achamos que a questão de ser licença menstrual só não é tão adequada à realidade transversal, porque muitas doentes estão em menopausa induzida, estão amenorreicas, por exemplo, porque fazem pílula de forma contínua, mas ainda assim têm períodos que não conseguem ir trabalhar porque mantêm a sintomatologia. Portanto, aqui seria muito importante que a endometriose fosse considerada uma doença crónica, no nosso país, que não é. Claro que tudo isto tem de ter regras e tem de ter protocolos bem apertados, mas podia haver a possibilidade de essa licença não ser dita menstrual, mas ser uma licença, por exemplo, de um período de um ano, renovável. No fundo, aquilo que acontece, e de forma muito prática para explicar, é que às vezes a doente quando acorda de manhã não se consegue levantar devido à dor incapacitante. Mas, se calhar, à tarde já consegue ir trabalhar. Porquê? Porque tem a sua medicação SOS, consegue tomar a medicação, consegue fazer efeito e já consegue trabalhar. Outras vezes, está com uma diarreia terrível, que não consegue sair da casa de banho e isso também é um fator que impossibilita de sair de casa. Isto são coisas que, sendo pontuais, podem acontecer uma, duas, três vezes por mês.
Nestes casos, não faz sentido ir ao médico, porque a doente sabe como é que há de gerir aquele episódio, só precisa de tempo. Claro que há determinadas dores e determinados sintomas em que é mesmo necessário ir a uma urgência hospitalar, porque só a medicação endovenosa é que vai ajudar, mas, na maior parte dos casos, quando há o diagnóstico já efetivado, quando a doente tem a sua medicação SOS, quando já conhece estas crises, sabe como atuar e só precisa de tempo. Algumas justificações que dão para não aprovarem essas licenças é mesmo 'ah, a doente pode meter a baixa dos três dias'. Primeiro, a baixa dos três dias não é remunerada nos três dias, depois, para a ter tem de ir sempre ao centro de saúde. Portanto, vamos estar a entupir os centros de saúde, desnecessariamente, não é? Porque se eu consigo controlar aquilo em casa, eu não preciso estar sempre a ir, e é um bocadinho isso. Era preciso olhar para a a endometriose e para adenomiose de forma individual e criar alguma cosia que permitisse a estas mulheres terem esta possibilidade.
Já me me falou de sensibilização, falámos agora desta questão da licença mais alargada, mas que outras medidas considera que, à partida, são essenciais para apoiar estas doentes?
A literacia é sem dúvida um ponto muito importante, seja para os profissionais de saúde, seja para a sociedade em geral. Lá está, nós fazemos este trabalho nas escolas, mas não temos a capacidade de chegar a todas as escolas e a todos os jovens porque são milhares. Na escola fala-se de outras patologias e quando se dá, por exemplo, o sistema reprodutor, poder haver logo este alerta e esta consciencialização de que 'ok, a menina começa a menstruar, tem a menarca, mas se tiver determinados sintomas tem de procurar ajuda'. Não custa muito mudar isto, são pequeninos detalhes que podiam ser instituídos e que poderiam fazer a diferença. E lá está, depois a questão do Serviço Nacional de Saúde, que precisa mesmo de ser reestruturado, de termos alguns hospitais centrais com capacidade para receber estas doentes. Neste momento, temos doentes que vêm do Algarve para o Porto para serem atendidas e serem operadas em endometriose. Isto é complicado.
Se os homens experienciassem a endometriose da mesma forma que as mulheres, já se sabia porque é que ela existe, já havia cura
Considera que a luta contra a doença tem sido prejudicada por afetar apenas mulheres?
Sem dúvida, sem dúvida alguma. Eu acho que se os homens experienciassem a endometriose da mesma forma que as mulheres, já se sabia porque é que ela existe, já havia cura. Para já, enquanto mulheres, sempre fomos muito habituadas a calar todos estes sintomas que acabam por ser muito íntimos e muito pessoais. E há, efetivamente, doentes que não se sentem capazes de partilhar que não conseguem ter relações sexuais ou que estão constantemente com diarreias ou que têm hemorragias, porque são coisas íntimas, são coisas pessoais. A endometriose tem a mesma predominância que a diabetes, por exemplo. Toda a gente sabe o que é diabetes e existem centenas de estudos e evolução em termos de tratamento e na endometriose não. Porquê?
A vossa associação tem registado uma maior procura? Como vos chegam em grande parte?
Sim, nos últimos anos temos atendido cerca de 4.200 mulheres por ano, desde redes sociais, mensagens privadas, e-mail, telefonemas, videochamadas e, às vezes, presencialmente, de todo o país. Chegam das mais variadas formas - desconfiam que têm o diagnóstico, precisam de indicação onde é que podem ir obter o diagnóstico, já têm o diagnóstico mas sentem-se mal acompanhadas, já têm o diagnóstico mas precisam de outras estratégias. Há aqui toda uma mudança de vida que é necessária também para conseguir colmatar um bocadinho os sintomas da doença e isto implica nutrição anti-inflamatória, higiene de sono muito importante, muito relevante, fisioterapia do pavimento pélvico, psicologia, porque estamos a falar de uma doença que tem um impacto em todas as áreas da vida da doente e, às vezes, o fator psicológico fica muito, muito afetado.
Portanto, dependendo de cada necessidade, ajustamos também o apoio que damos às doentes, mas temos todo o tipo de pedidos de apoio e agora, mais recentemente, temos tido cada vez mais mães alerta e a pedir ajuda para saber 'a minha filha tem 13, 14 anos, tem dores, o que é que eu posso fazer para a ajudar?'. Iso, para nós, é extremamente importante e de louvar e é sinal de que o nosso trabalho está a surtir efeito e estamos no bom caminho nesse campo.
A doença é muito única e impacta de forma diferente mulher para mulher e nós tentamos ir ao encontro da necessidade de cada doente
Fala-me deste acompanhamento, já me disse que vão a escolas e centros de saúde, fazem ações de sensibilização… Para quem nos lê e necessita, como é que a vossa associação pode ajudar?
Nós partilhamos imensa informação também nas redes sociais, no Instagram, Facebook, temos ações de sensibilização pelo país, por exemplo, em março tivemos uma ação em Lisboa, estamos a orientar outra no Porto, agora no final do ano. O ideal é seguirem o nosso site, as nossas redes sociais, que percebem com tudo aquilo que vamos partilhando que não estão sozinhas e que encontram do lado cá alguém que fala a mesma língua e que as pode ajudar de alguma forma. Todas temos necessidades diferentes, a doença também é muito única e impacta de forma diferente mulher para mulher e nós tentamos aqui ir um bocadinho ao encontro da necessidade de cada doente e tentamos ajudar da forma que nos for possível.
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