Deixar de conduzir pode ser uma experiência "profundamente traumática". A afirmação é feita por um dos grandes especialistas a nível nacional, Dr. Alberto Maurício.
Porém, a condução pode ser uma arma forte para estimular mobilidade e atividade numa idade mais avançada. Que o diga a avó Lena, uma senhora de 63 anos que se encontra a tirar a licença de condução pela primeira vez.
Foi aliás com a premissa da história da avó Lena - contada pela Prio, que falámos com o Dr. Alberto Maurício a propósito do envelhecimento aliado à condução.
Existe alguma idade referência para deixar de conduzir? Como se informa uma pessoa que já não está apta para guiar um automóvel? De que forma a condução pode ser estimulante para manter a mobilidade? Estas e outras dúvidas foram respondidas pelo psicólogo e especialista na avaliação e reabilitação psicológica de condutores.
Dr. Alberto Maurício© CNS
A idade avançada, só por si, não impede que uma pessoa consiga comprovar aptidão física, mental e psicológica, para conduzir com segurança
"Com esta idade já não vou tirar a carta". Esta frase, para si, não deve fazer o mínimo sentido, correto?
A condução é uma atividade complexa que depende da preservação de capacidades cognitivas, motoras e de controlo do comportamento adequadas. A afirmação não faz sentido se tivermos em conta que ninguém está impedido de obter a carta de condução por ter uma idade avançada - não existe impedimento legal. E também porque a idade avançada, só por si, não impede que uma pessoa consiga comprovar aptidão física, mental e psicológica, para conduzir com segurança, que são de demonstração obrigatória antes do ingresso na aprendizagem da condução.
No entanto, com o avanço da idade ocorre o declínio gradual das funções cognitivas e motoras envolvidas na condução, que condiciona as atividades de focalizar e processar informação visual, auditiva e propriocetiva, planear ações e tomar decisões, mobilizar a força, coordenação e velocidade de reação, necessárias à condução. Este declínio, com impacto nas atividades da aprendizagem da condução, nomeadamente para aquisição de automatismos motores e psicomotores, torna o objetivo de obter a carta de condução mais difícil e, em certos casos, irrealizável, na população sénior.
Possibilidade de conduzir representa uma proteção significativa contra o isolamento
Pegando no exemplo da Avó Lena, que - com a ajuda da Prio - começou a tirar a carta de condução aos 62 anos, quão importante é este passo para estimular a mobilidade numa idade mais avançada?
A história da Avó Lena é um exemplo inspirador de como nunca é tarde para conquistar novos desafios e preservar a mobilidade. O envelhecimento populacional é uma das mais significativas tendências do nosso século, pelo que a carta de condução e a possibilidade de conduzir são muito valorizadas pelas pessoas mais velhas na preservação da sua mobilidade, decorrente da liberdade, independência, controlo e autonomia que proporcionam.
Nesta população, a possibilidade de conduzir representa uma proteção significativa contra o isolamento e promove a participação em tarefas e atividades necessárias ao seu bem-estar físico, emocional, espiritual e relacional. A utilização de um meio de deslocação próprio pelas pessoas mais velhas é muitas vezes a melhor ou única opção de mobilidade em zonas sem uma rede de transportes públicos eficaz, ou na presença de condições clínicas em que o uso de meios externos se torna impraticável.
Como é feita a avaliação para atestar a capacidade de condução a condutores mais velhos?
Na obtenção e na revalidação da carta é feita uma avaliação médica, regulamentar, preferencialmente pelo médico assistente. Durante a validade da carta, quando houver comprometimento da saúde ou comportamentos de condução que comprometam a segurança, pode ser realizada uma avaliação médica pela autoridade de saúde. Nas avaliações médicas são analisados:
- diversos parâmetros visuais;
- a audição;
- a funcionalidade dos membros;
- a força e mobilidade geral;
- doenças cardiovasculares;
- diabetes;
- doenças neurológicas;
- álcool;
- medicamentos, entre outros indicadores de saúde.
No âmbito destas avaliações os médicos podem solicitar uma avaliação de aptidão psicológica complementar, também regulamentada.
Adicionalmente, quando existem dúvidas sobre as aptidões de condução por parte dos próprios condutores, de profissionais de saúde ou de familiares/cuidadores, estas pessoas podem solicitar uma avaliação especializada de aptidão para a condução no âmbito da Psicologia, que envolve o exame de funções cognitivas, percetivas, motoras e de caraterísticas pessoais relacionadas com as atitudes, comportamentos de condução e fatores emocionais. No âmbito da minha prática profissional, este serviço pode ser solicitado no CNS Lisboa e, em casos específicos, pode ser realizada uma prova de condução para observação dos comportamentos de condução.
Das avaliações médicas e psicológicas de condutores podem resultar pareceres para manter, restringir ou cessar a condução. Este serviço de avaliação da aptidão para a condução é particularmente valioso em condutores com doenças neurológicas ou outras condições clínicas que possam afetar a condução.
Este tipo de avaliação foi sendo atualizada ao longo dos anos?
Ao longo do tempo foram implementadas alterações administrativas e legais, nomeadamente relativas às competências estabelecidas para as entidades e profissionais (médicos e psicólogos) intervenientes, às condições físicas, mentais e psicológicas a explorar e aos critérios de aprovação/reprovação nas avaliações.
Há condutores que restringem a condução às suas necessidades de deslocação em períodos do dia, percursos e condições climatéricas e de trânsito
Que indicador é fundamental para perceber que uma pessoa já não está apta para conduzir?
Não existe apenas um indicador, mas um conjunto de sinais ou acontecimentos críticos que devem ser reconhecidos e considerados como indicadores da necessidade de uma avaliação especializada para apurar a aptidão para conduzir:
- falta de consciência crítica dos próprios défices;
- confiança excessiva nas suas capacidades;
- irritação excessiva durante a condução;
- desorientação;
- falta de reconhecimento ou desobediência a sinais de trânsito e semáforos;
- decisões lentas ou erradas na condução;
- velocidade desadequada (demasiado lenta, excessiva ou irregular);
- trajetória irregular na via;
- erros nas intersecções (ângulos de viragem, não ceder passagem, atraso ou antecipação das ações);
- sucessivos embates a baixa velocidade;
- confundir os pedais de acelerador e travão; produzir acelerações inadvertidas/involuntárias;
- envolvimento em situações de risco e/ou acidentes rodoviários.
Aos olhos de um especialista, há alguma idade referência para se deixar de conduzir?
Não! Há condutores que mantêm capacidades para conduzir em segurança até uma idade muito avançada, frequentemente restringindo a condução às suas necessidades de deslocação em períodos do dia, percursos e condições climatéricas e de trânsito, específicos. É essencial que a aptidão para conduzir possa ser tomada no âmbito de avaliações especializadas que envolvam, singular ou cumulativamente, avaliação médica, avaliação psicológica e demonstração de condução prática.
No caso de um parecer para cessar a condução, uma avaliação global desta natureza será o contexto mais adequado para lidar com o possível impacto psicológico negativo de deixar de conduzir, esclarecer a associação entre os dados da avaliação e os riscos para a segurança da condução e criar alternativas de mobilidade adequadas.
O envelhecimento traz perda de capacidades, ao mesmo tempo que torna mais importante a questão da mobilidade. Como se combinam estes dois polos opostos?
A qualidade do envelhecimento depende em grande medida dos cuidados pessoais e de saúde física e mental seguidos ao longo da vida. O que impacta necessariamente no decréscimo inexorável de capacidades que possibilitam todos os tipos de mobilidade.
Para efeitos da preservação da mobilidade automóvel durante o maior tempo possível é indispensável que se conjuguem, dentro do possível, um estilo de vida saudável (física, mental e psicológica) e a supervisão das capacidades específicas necessárias à condução que possam assegurar que os idosos se mantêm o máximo de tempo possível como condutores em condições de segurança.
No que respeita às capacidades de condução, o desígnio é atingível através da automonitorização pelos próprios das suas capacidades, por avaliações efetivas e rigorosas das condições físicas, mentais e psicológicas nos períodos estabelecidos para revalidação da carta de condução e através da referenciação de condições clínicas suscetíveis de comprometer a segurança da condução, por entidades que os regulamentos legais já preveem.
Um aspeto importante da combinação destes polos para a manutenção da mobilidade nos condutores idosos é a possibilidade de através de avaliações especializadas ser possível conjugar o decréscimo de capacidades ao longo da vida com as necessidades específicas de mobilidade das pessoas através de restrições e/ou adaptações à condução - condução numa distância limitada, condução fora das autoestradas, condução com velocidades limitadas, etc.).
Deixar de conduzir? É crucial permitir a expressão de emoções negativas e mostrar compreensãoDe que forma se transmite a uma pessoa que já não está apta para conduzir?
Dialogar sobre a cessação da condução pode representar uma tarefa complexa e emocionalmente intensa e desgastante, pois os condutores mais velhos valorizam muito a independência e a mobilidade que ela proporciona. Para estas pessoas, deixar de conduzir pode ser uma experiência profundamente traumática.
Neste contexto, o diálogo ou a comunicação sobre a necessidade de deixar de conduzir requerem elevada sensibilidade para ajudar o condutor a lidar de forma adaptativa com o impacto psicológico negativo que pode resultar dessa decisão e é crucial permitir a expressão de emoções negativas e mostrar compreensão.
Numa avaliação da aptidão para a condução em que os resultados de desempenho em testes, ou a observação do comportamento, identificam compromisso significativo das capacidades para conduzir, é transmitido um parecer fundamentado para cessar a condução, com esclarecimento das razões por que os compromissos constatados potenciam o risco.
Na transmissão dos resultados são abordados aspetos sensíveis tais como: a possibilidade de deixar de conduzir como uma decisão normal na vida de uma pessoa; os benefícios de deixar de conduzir; ponderação de alternativas à condução; identificação de apoio familiar e/ou de amigos nas suas necessidades de deslocação; incentivo à utilização de transportes alternativos; a utilização de serviços de entrega ao domicilio (alimentos, medicamentos, etc.…); os benefícios de não conduzir, nomeadamente a possível diminuição de riscos para a saúde e o aumento do prazer em viajar salvaguardado de situações de tensão e risco na condução.
No seio familiar, podem ser seguidas as estratégias indicadas ou aconselhamento de uma avaliação profissional, especializada e abrangente, que de forma independente pode sustentar um parecer sobre a condução, descansando e desobrigando os familiares desse ónus.
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