"Deixar as minhas mensagens. Escolhe fazer o melhor, estar onde estás"

Márcia chega com o seu sétimo trabalho, 'Ana Márcia', e conversou com o Notícias ao Minuto sobre este novo disco - que inclui canções antigas mas que ainda não tinham sido editadas. Uma história dividida em três capítulos que transparece fases diferentes da vida.

Notícia

© EstelleValente

Marina Gonçalves
13/03/2025 07:41 ‧ há 3 horas por Marina Gonçalves

Cultura

Marcia

'Ana Márcia' traz-nos um disco que leva Márcia, mais uma vez, a uma versão mais acústica... e a viajar pelo passado. 

 

'Ana Márcia' é o novo álbum da cantora e que está dividido em três capítulos: "Explora o lugar da infância do passado no primeiro; a jovem que encontra o amor e desamor no segundo, e que descobre, na maternidade, o regresso à sua própria infância através da magia da infância dos filhos. Volta assim à sua criança interior, recomeçando o caminho e recriando os passos, refazendo os seus ensinamentos numa viagem circular entre o presente, o passado e o futuro, percebendo que caminha para a criança que foi."

Este novo trabalho já foi apresentado no Teatro Maria Matos, a 10 de fevereiro, e tem concerto marcado no Porto, no Teatro Sá da Bandeira, a 31 de maio. 

Em conversa com o Notícias ao Minuto, Márcia também falou de amor, da importância da empatia e, sobretudo, das mensagens que não devem ficar esquecidas. 

Este novo álbum volta a trazer uma versão mais acústica - ao contrário do último, 'Vai e Vem' - e tem músicas antigas que já tinhas escrito mas ainda não as tinhas editado. Por que razão agora juntá-las neste álbum e trazer este novo trabalho que te faz regressar não só ao passado, mas também a este estilo mais acústico? 

É uma procura da essência, todo o disco. É um voltar às raízes. O álbum anterior foi uma viagem de descoberta. Arrisquei-me por caminhos que não costumava fazer, fiz eu a produção total e assumi coisas que ainda não tinha experimentado fazer sozinha. O álbum até tem algumas partes mais eletrônicas, coisas que fazia em maquetes e não queria assumir. Foi uma revolução pessoal, o álbum anterior. É sempre uma revolução pessoal, porque, no fundo, aquilo que estás a tentar fazer é constantemente recuperar o teu poder pessoal, constantemente assumir o teu poder pessoal. O outro álbum foi um bocado esse arriscar, de assumir que não há escolhas erradas. Não há decisões erradas, há decisões. 

Digo aos meus filhos que muitos dos acidentes que acontecem são porque as pessoas não conseguem decidir. Por exemplo, no trânsito, a indecisão é o que nos faz mal, é o que provoca acidentes.

Este é uma outra tomada de posição de 'agora vou mergulhar na essência de tudo'. Onde é que comecei? O outro fugia um bocado da linha e este é [mais numa de] 'ok, mas agora quer voltar para casa'. Este é mesmo voltar a casa.

As tuas músicas, no fundo, mostram um bocadinho o teu 'eu'...

Acho que não é sobre mim, o meu mote não é ser sobre mim, é ser sobre a verdade. Aquilo que me motiva é a verdade. 

Não há escolhas erradas, há a tua escolha. É muito fascinante e ao mesmo tempo é muito confuso, de modo que não considero que os meus discos sejam sobre mim

E, no fundo, é a tua verdade...?

A verdade só pode ser vista aos olhos de cada um. A verdade é sempre subjetiva e relativa. Aquilo que sinto é que sempre tive um fascínio grande pelo documentário, pelo cinema documental. E não o 'docufiction', que é um modo de fazer cinema documental ficcionado. Por isso, já estás a alterar a realidade. 

Na faculdade, estudei documentário e realizei três documentários, um deles já em estágio em Barcelona - onde fui trabalhar para uma produtora em estágio e realizei com as pessoas amigas que fiz lá. O documentário ensina-te um bocado isso. Tu vais filmar a realidade e eu gostava de ver a verdade. A verdade, às vezes, podia ter falta de meios técnicos, mas era a realidade, a verdade, nua, que estava lá. Mas tem-se o trabalho da edição, que no fundo é o trabalho do contador de histórias, e eu era montadora - ganhei um prémio de montadora em Madrid. Na montagem tens a escolha do que é que vais mostrar.

De como vais contar a história...

Filmei a minha irmã durante um ano para poder fazer um documentário sobre ela. Na faculdade também me filmei a dormir, durante meses, porque era uma obsessão para captar os momentos que não consigo [ver]. Mas mesmo a verdade filmada, depois, quando vais contar a história, és tu que escolhes quais são os momentos que integras na conversa, no discurso. Por isso, estamos constantemente a contar histórias, só que é consoante aquilo que nós acreditamos e aquilo que queremos dizer.

E tens sempre de fazer escolhas. Não há escolhas erradas, há a tua escolha. É muito fascinante e ao mesmo tempo é muito confuso. Não considero que os meus discos sejam sobre mim, é sobre uma história. Calha que a pessoa que viveu as histórias fui eu, mas as histórias estão a ser contadas de uma forma constantemente universal.

Os filmes que mais gosto de ver são de histórias pessoais. Toda a história do mundo é feita por pessoas. E como diz uma música do Arnaldo Antunes, 'Sabia': "Todo o mundo foi neném". Todo o mundo foi bebé, até o Hitler e o Putin, e isso é uma tela em branco. Acho fascinante como as pessoas são alteradas ao longo da vida. Qual é a essência das pessoas? E este álbum, o 'Ana Márcia', é assumir a história desta menina. Porque é que é importante contar esta história? Porque é a que sei contar.

A empatia é só isto. Se quiseres contar uma história tua, consigo me pôr no teu lugar. Mas para me pôr no teu lugar tenho de ir ao meu arquivo. Onde é que já passei esta sensação para te mostrar que te entendo? A partir daí, temos uma ponta entre nós e conseguimos nos entender

Começando pelo início do álbum, com a música 'Sei Lá' ou 'Paz de Sono', que é quando falas mais da tua infância, da Ana Márcia... Falas muito em regressar a casa. Como é que foi este regresso ao passado, este processo de procura pela Ana Márcia? 

Foi inusitado, quase involuntário. Aconteceram muitas coisas, a vida vai acontecendo, e a vida é que é importante. E tens de ir arrumando as coisas, acho que é o papel da arte. Mas imagina, tu agora, se desligássemos a entrevista e contavas-me uma coisa que te anda a perturbar ultimamente, a minha forma de te entender é pôr-me no teu lugar e tentar perceber onde é que isso já me aconteceu. Quando te conto a minha história, estou a arranjar uma ponta entre nós, que é para que tu te sentires entendida. 'Olha, já passei por uma coisa semelhante'. Aí começo a perceber-te e tu começas a perceber-me, e essa é a magia da música. A música é muito mais do que outra forma de arte. 

Quando escreves uma canção, a única coisa que tens de fazer é ser sincera. Porque escreveste aquilo fechadinho no quarto ou na tua salinha, e depois há um dia em que essa música está nas rádios, chegou ao Brasil, chegou a várias pessoas que que não te conhecem... E [depois] estás numa sala de concerto e há 30 pessoas na plateia que estão a ouvir e a chorar porque se reveem naquilo. Isso é uma magia da cura - quando tu conversas. É a magia da empatia. A empatia é só isto. Se quiseres contar uma história tua, consigo me pôr no teu lugar, [mas] para me pôr no teu lugar tenho de ir ao meu arquivo. Onde é que já passei esta sensação para te mostrar que te entendo? A partir daí, temos uma ponta entre nós e conseguimo-nos entender. O ser humano é isso, é constantemente conectar-se. Sem essa conexão, somos vazios. Sem o outro, somos nada. 

Lembro-me do Valter Hugo Mãe ter um livro, 'O Paraíso São os Outros'. Nada vale sem o outro. E esta conexão com o outro tem de se fazer de parte a parte. Dou o primeiro passo ao mostrar as minhas canções, e quem quiser conectar-se já tem o caminho feito nesse sentido. Por isso é que recebo muitas mensagens de pessoas a desabafar. Adoro sentir isso. Isso é uma conexão. Tudo é comunicação. As coisas más que acontecem nas famílias e nas relações é sempre má comunicação. E as coisas más que acontecem no mundo hoje em dia também, como as 'fake news' e etc... A má comunicação é muito nociva.

No álbum depois passamos para a parte do amor - que acredito que te tenhas inspirado um bocadinho na adolescência, talvez, e até escolheste a música com o Sérgio Godinho, 'Às Vezes o Amor' (que foi lançada em 2013). É uma música já 'antiga' mas decidiste ir buscá-la. O porquê da escolha deste tema para este álbum? Sentiste que fazia a transição perfeita...? 

Meti essa canção no final do segundo capítulo por alguma razão, e não no início. O início ainda vem com uma certa sombra, porque tu podes sempre escolher - durante a tua vida vais sempre escolher. As coisas todas proporcionam outras coisas, por isso tens várias maneiras de olhar. Essa é a tua maneira de contar a história, é a tua maneira de olhar. O que é que escolhes ver daí? Quis pôr essa canção no final porque tu vens daquele primeiro capítulo onde há uma introdução ao mundo da pertença. Qual é a base? 

O que é basilar é um sentimento de procura de pertença, que é o que diz o 'Sei Lá', o 'Paz do Sonho'... E esse sentimento de pertença é responsável pela nossa felicidade, pela felicidade do ser humano - a sensação de que pertences a uma comunidade, a um grupo. E a sensação maior de solidão é quando te sentes a ovelha negra da família, a ovelha negra da faculdade, a ovelha negra da turma... Essa sensação é de exclusão enorme, por isso é que essa segregação e a rejeição é o oposto do sentimento de pertença. Por isso, o primeiro capítulo fala de um sentimento de pertença e o segundo começa com uma sensação de abandono, ainda. O que é que vais escolher? Mas termina com a música do Sérgio, que é uma música que abre para o amor.

A noite existe, e se estivermos a esconder e a fingir que ela não está cá, ela vai acabar por ganhar mais força e aparecer, sei lá, em forma de doença ou distúrbio mental...  Ou então começas a bombardear países... Por isso, sou muito apologista de aceitar a tristeza e as coisas que nos acontecem, porque esse é o nosso caminho

Essa canção, interpretei no disco 'Voz e Guitarra' e fiquei com ela para mim, porque é uma canção tão luminosa. E o Sérgio tem essa capacidade de escrever em voz feminina. Foi a única no disco que gravei em direto. Eu e o Nelson Carvalho - que é um técnico de som excelente do país - optámos por gravar em direto porque eu não estava a conseguir gravar a guitarra e depois a voz. Gravei em direto que é a minha essência - tocar guitarra e cantar ao mesmo tempo. E a música saiu toda. É uma canção que já considero quase minha. É uma canção sobre apaixonar, muito interessante. Abre para o que é que vem no terceiro capítulo. Como vês, estás a escrever uma história. Se tirasse a música daquela ordem, já não havia terceiro capítulo, que para mim é o mais luminoso, que é o capítulo da consumação do amor, o da criação.

Nas ilustrações que tenho no álbum, que fiz no final da faculdade, no último ano de pintura, em que escolhia cores muito luminosas. Na altura, por coincidência, li um livro do Aldous Huxley que falava do paraíso na Terra, da procura da cor, da luz e do brilho. Acho que sou uma pessoa que procura sempre o paraíso na Terra. Apesar da sombra estar lá, que não quero aniquilar nunca. Falo sobre ela, escrevo sobre ela. Conheço essa sombra. Quem conhece essa sombra tem de saber viver com ela. E acho que todos conhecemos essa sombra, apesar de tentarem aniquilar ao máximo essa parte sombria da vida.

A noite existe, e se estivermos a esconder e a fingir que ela não está cá, ela vai acabar por ganhar mais força e aparecer, sei lá, em forma de doença ou distúrbio mental... Ou então começas a bombardear países... Sou muito apologista de aceitar a tristeza e as coisas que nos acontecem, porque esse é o nosso caminho. 

A vida inteira vais estar a tentar aceitar tudo o que te aconteceu, tudo o que escolheste, tudo o que fizeste. Aceitar, como dizia o Coimbra de Matos, para não ceder à culpa. Porque a culpa corrói. O resto são erros, corrigem-se.

Esse [tema] não tem guitarra, o que tem de fundo é a minha voz samplada. No fundo queria que os pais ganhassem essa melodia para poderem adormecer os filhos, se precisassem, quando eles tivessem insónias. É o meu contributo para um mundo que está visivelmente idiota com tanta parvoíce

No terceiro capítulo deste álbum está presente a maternidade, precisamente a criação, o amor mais consolidado... Tenho especial curiosidade pela música que juntas a voz do teu filho, 'Ladainha pra Dormir'. Achei muito curioso aquele início, muito diferente... Como foi o processo de criação dessa música? Aquele áudio do início, já é um hábito gravar esses áudios com os teus filhos? 

Aquele áudio é retirado de um vídeo. Ele não costumava acordar de noite (não sei se tinha um ou dois anos) e nessa noite acordou fora de horas (de madrugada, os bebés vão para a cama às 21h). Acordar àquela hora foi completamente inusitado e filmei-o porque ele estava muito fofo, sentado na mesa da cozinha, com o ar muito assustadinho. Já tinha cantado e perguntei se ele queria que cantasse outra vez. Ele disse que sim e quando começo a cantar, vê-se ele a sorrir. Esta coisa da profissão, tem dias em que corre bem, tem dias em corre mal, há anos melhores e piores, mas uma coisa ninguém me tira: a minha voz já acalmou muita gente e, sobretudo, a mim própria e aos meus filhinhos.

Guardei aquilo, só aquele 'humming'. Como queria fazer um disco para crianças um dia, fui guardando essas ideias. E quando chega aqui a contar esta história, quero incluir este paraíso na terra que é o facto de ter paz em casa. E esse [tema] não tem guitarra, o que tem de fundo é a minha voz samplada. No fundo queria que outros pais ganhassem essa melodia [aquele 'humming'] para poderem adormecer os filhos, se precisassem, quando eles tivessem insónias. É o meu contributo para um mundo que está visivelmente idiota com tanta parvoíce.

Os filhos são teus críticos no que diz respeito à música? 

Claro! Eles são diferentes. Ela é mais crescida, é muito organizada e um bocado crítica sem dizer nada. Detesta ouvir detalhes técnicos, mas também temos de perceber que a Carolina já tem 13 anos, ela acompanhou quase os discos todos em estúdio. Apanhou secas de meia-noite. Os pormenores técnicos destroem-lhe a graciosidade da música.

O Eduardo, o mais pequenito, é muito músico. Ele compõe, toca piano e está constantemente à procura de palavras. Agora tem um rap dele que canta a toda a gente e vai compondo. Acho engraçado ele ter esse 'skill'. É muito entusiasta e quer ir tocar, e fica nervoso antes dos concertos por nós... Tem o medo do palco. Sofri muito disso também na adolescência, por isso é que também só gravei aos 27 anos. Só fiz um concerto aos 18 anos e nem me mexi da cadeira. Acho muito engraçada a noção artística dele. Ele é artista. E ela é super analista. É muito criativa, só que é super organizada e é muito para as artes plásticas, de desenhar.

Continuo com aulas de voz e apesar de ser soprano alto, nunca usei o meu soprano porque aquilo é o que me dá conforto. Aquela voz é o que me dá conforto, e quero ser esse conforto no mundo

Já viveste experiências muito marcantes na tua vida, como a perda dos pais e o cancro (e também a maternidade é uma experiência marcante pelo lado 'positivo')... Estas experiências são fáceis de trazer para as canções? É te fácil transparecer para as canções?

Transparecer não sei. Fácil de pôr nas canções é porque preciso das canções para processar tudo o que vejo no mundo, para digerir. É o papel da escrita para mim. Escrever o meu livro, 'As Estradas São Para Ir', também foi um processo de digestão, publiquei-o a seguir à morte do meu pai. Tive de escrever. Não é difícil de transportar para a minha escrita e para a minha arte. Transparecer, não sei se transparece ou não, acho que isso depende da interpretação e do interesse de cada ouvinte. A Tracy Chapman, que é uma das referências da minha adolescência, eu aprendi a tocar com as canções dela... Será que ela viveu aquelas histórias? Será que imaginou aquelas histórias? 

Ou a Joni Mitchell que no álbum 'Travelogue' - o meu disco favorito e que me influenciou - tem a voz muito grave... Sempre tive uma predileção por cantoras com vozes mais suaves. Continuo com aulas de voz e apesar de ser soprano alto, nunca usei o meu soprano porque aquilo é o que me dá conforto. Aquela voz é o que me dá conforto, e eu quero ser esse conforto no mundo.

Para mim, quando morrem pessoas no Mediterrâneo a tentar atravessar e fugir de conflitos, ou quando há uma guerra, quando alguém faz um vídeo e dizer que tudo foi bombardeado e que perdeu o pai, mãe, família e não tem onde viver... Isso dói-me no meu corpo como se fosse um irmão. Porque nós somos sobreviventes de uma catástrofe que está a acontecer

Também falas muito de amor... Sentes que o amor continua em falta no mundo?

O meu filho questionou-me porque digo na letra "onde houver amor o mal não pode acontecer", mas acontece. Ele está chocado com a guerra, com o que acontece no mundo. Disse-lhe: "Imagina se as pessoas reconhecessem que o amor é o que sentem, que a humanidade é uma só". Ainda não consigo explicar muito bem que somos um só. Para mim, quando morrem pessoas no Mediterrâneo a tentar atravessar e a fugir de conflitos, ou quando há uma guerra, quando alguém faz um vídeo a dizer que tudo foi bombardeado e que perdeu o pai, mãe, família e não tem onde viver... Isso dói-me no meu corpo como se fosse um irmão. Porque nós somos sobreviventes de uma catástrofe que está a acontecer. Obviamente que isto causa um bocado o síndrome do sobrevivente, e há pessoas que se sentem mal de estarem a almoçar fora. 

É preciso ter muito cuidado com esta coisa da tecnologia. Enquanto estás a olhar para o telefone, estás conectado num outro sítio, já não estás no sítio onde tu estás

As coisas são tão díspares que tu vês as notícias com as imagens em direto da guerra, vais para o intervalo e vês uma publicidade do creme anti-rugas. Isto é tão discrepante que a pessoa tem que estar minimamente alienada para conseguir digerir. Obviamente que essa música, 'Manhã Bela', é deliberadamente ingénua, porque a verdade é essa. Mesmo por mais inocente que pareça, que não sou, se houvesse amor, óbvio que o mal não podia acontecer. Porque se cedesses a esta realidade de que és irmão daquele que estás a atacar, como aconteceu na nossa guerra colonial... Isto aconteceu em Portugal, tivemos esta realidade. Temos de falar das coisas porque senão nunca as vamos aceitar e digerir. E isto é um problema coletivo, é uma coisa que em Portugal não se fala muito. As gerações antigas não gostam de falar da guerra colonial.

Como é que tu hás de controlar situações de bullying [se] estás preocupado com situações de bullying no Instagram? Vais para o Instagram dizer que estás preocupado com situações de bullying, mas depois à noite estás no Instagram a dizer que estás preocupado com situações de bullying em vez de estás a ouvir aquilo que está a acontecer, em vez de estás a ouvir a pessoa

Se é preciso mais amor? Não é preciso mais amor, o amor está lá. Mas quanto mais tempo te tirarem de relação verdadeira entre as pessoas e quanto mais relação com o mundo tiveres através de Instagram ou WhatsApp - esta coisa que está instalada agora, tens muitas conversas... Estás a ceder a um tipo de comunicação, hoje em dia, que é uma coisa muito pouco profunda e muito nociva, e dada a equívocos. Os equívocos impedem que se viva as relações como deve ser. É preciso ter muito cuidado com esta coisa da tecnologia. Enquanto estás a olhar para o telefone, estás conectado num outro sítio, já não estás no sítio onde tu estás. 

Temos uma rotina em casa, não há telefones à mesa, nunca. À refeição conversamos sobre o dia, temos a nossa rubrica de como é que foi hoje o teu dia. É aí que dás o espaço para perceber o que é que aconteceu na escola. É aí que tens acesso à realidade da tua filha na escola. Como é que tu hás de controlar situações de bullying [se] estás preocupado com situações de bullying no Instagram? Vais para o Instagram dizer que estás preocupado com situações de bullying, mas depois à noite estás no Instagram a dizer que estás preocupado com situações de bullying em vez de estares a ouvir aquilo que está a acontecer, em vez de estares a ouvir a pessoa.

É como tu estares constantemente a ver tablóides de relações amorosas em vez de estares a jantar com o teu marido e a aproveitar o momento da relação. Tu tens de estar onde estás. Cada vez mais estamos a ser puxados a estar num ecrã, num sítio onde não estamos, na conversa onde não estamos, na relação onde não estamos... 

Se tivesses de deixar o teu legado, o que é que tu escolhes deixar? O que escolho é esse terceiro capítulo como mensagens para o futuro. Escolhe fazer o melhor, fazer o melhor para ti, estar onde estás, inventar em vez de ceder à depressão da vida. Tens ainda tanta coisa para criar e tanta coisa para inventar. Hoje em dia a guerra verdadeira é essa, entre o poder e a criatividade

A tecnologia está-nos a escravizar um bocadinho e estamos a ser um bocado afastados da vida. É preciso ter muito cuidado, e não são as crianças, os adolescentes. Não! Somos nós, os adultos. E já é uma conversa que começa a ter barbas, graças a Deus, que as pessoas já começam a perceber isso. 

Vejo muitas pessoas a ver concertos e depois a olhar, a fazer scroll. Estás a abdicar da tua experiência de vida, é o que estás a fazer, em troca de uma coisa que te está a viciar e nem tens noção. 

Gosto de ter esta sensação de que o nosso espaço é seguro. E isso aparece no final do disco, é esse retrato sonoro da casa... O terceiro capítulo é precisamente isto. Tens noção de que a vida é finita, e se tivesses de deixar o teu legado, o que é que escolhes deixar? O que escolho deixar é esse terceiro capítulo como mensagens para o futuro, são as minhas mensagens. Escolhe fazer o melhor, fazer o melhor para ti, estar onde estás, inventar em vez de ceder à depressão da vida. Tens ainda tanta coisa para criar e tanta coisa para inventar. Hoje em dia a guerra verdadeira é essa, entre o poder e a criatividade. O poder da tecnologia, dos poderosos, dos magnatas do mundo... E a criatividade. Porque é a tua única maneira de resistir.

Este disco, acho que abarca muito todos os outros discos. É uma Márcia mais completa, que vem com o primeiro nome também. O disco é muito denso e muito leve ao mesmo tempo. É como se fosse uma proposta, esta coisa de criares o teu mundo seguro. Abdica de ver tanta notícia. Por exemplo, na pandemia, tinha amigos que estavam já doentes, que só estavam conectados constantemente ao ecrã e às notícias. É importante ter notícias, mas viver e saber. Não é viver dentro das notícias porque, senão, não consegues viver a tua própria vida. Cria a tua própria realidade nem que seja dentro das tuas quatro paredes. Depois sais e enfrentas o mundo, absorves, recolhes o que queres, aprecias a maravilha do mundo, porque há montes de mundo para apreciar. 

Trabalha com quem quer trabalhar contigo, casa com quem quer casar contigo, dança com quem quer dançar contigo... 

Como foi a apresentação do álbum no Teatro Maria de Matos? Qual foi o feedback, o que sentiste, o que é que as pessoas te deram?

A frase que mais ouvi de conhecidos, amigos e desconhecidos, foi "emocionei-me muito, chorei não sei quantas vezes". Foi um concerto muito especial, muito bonito, porque tínhamos também muitos convidados, ou seja, tens uma casa esgotada e depois tens alguns convidados que sabes que querem mesmo ver... O facto de saberes que queres ser ouvido... Aquele que nos ouve é um precioso lugar. Trabalha com quem quer trabalhar contigo, casa com quem quer casar contigo, dança com quem quer dançar contigo... Fiz também o concerto por capítulos, mais ou menos, e fui resgatar uma canção de 2015, que é 'Ledo sorriso'. "O teu tempo, o teu sorriso, o teu ledo sorriso, o teu mundo a quem te quer bem. E quem quiser dançar contigo em par." Quem tiver essa vontade de te abraçar, de te albergar, de te acolher... Quando começas uma relação assim, ou quando vais para um concerto em que as pessoas estão com muita vontade de te ouvir, já vais com uma serenidade de lisonja.

Acho que a euforia e a tristeza são dois polos que coabitam nas pessoas e em mim, e que têm de se aceitar

Não me contive nada em coisas que queria dizer e pessoas de quem queria falar. Foi muito emotivo e aquilo que recebi das pessoas foi precisamente isso. Tenho um amigo que disse que chorou o concerto inteiro. E depois terminei a chamar as pessoas ao palco, que era uma loucura que tinha em mente. 'O Assunto' é uma canção que, com certeza, vai ser pouco ouvida, porque é uma canção que não é radiofónica, mas é uma das minhas canções favoritas do disco. Tem um arranjo que pedi ao meu marido, queria uma coisa muito de solidão ao início, que falasse da tristeza e que acabasse em euforia. É uma canção completamente bipolar, que me representa totalmente e que representa imensas pessoas. 

Esta coisa de a pessoa estar sempre constante, isso quase não existe. Aquilo que aprendi como truque é uma coisa um bocado como os japoneses, que é "subo pouco para não cair". E isso já está escrito desde 2009, essa canção, 'Paz do Sono'. A euforia e a tristeza são dois polos que coabitam nas pessoas e em mim, e que têm de se aceitar. 

E que são libertadores...

Muito. Quando choras sentes-te aliviada e quando gritas também te sentes aliviada. Tinha esse sonho quando fiz essa música. As pessoas vieram [ao palco], e foi muito engraçado. Tenho pessoas, amigas, que foram ver o concerto e disseram "aquele final, o que eu chorei"... Essa sinergia, para mim, é uma coisa que me interessa muito. Interessa-me muito o concerto ao vivo e sei que dou o máximo, e cada vez é mais prazeroso. Se tiveres prazer em palco é muito melhor do que se estiveres preocupada, e as pessoas vão desfrutar muito mais. 

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