A pouco mais de um ano de deixar o Palácio de Belém, e a seis de perder o poder constitucional de dissolução da Assembleia da República, Marcelo deparou-se com uma crise política desencadeada por sucessivas notícias sobre uma empresa familiar do primeiro-ministro, Luís Montenegro, que deverá culminar com o chumbo de uma moção de confiança e consequente demissão do Governo.
Com a anunciada queda do executivo minoritário de Luís Montenegro, ao chefe de Estado não restará alternativa que não a de dissolver a Assembleia da República pela terceira vez, tendo em conta não só a sua prática política passada, mas também a inexistência de uma maioria parlamentar que permita alimentar expectativas quanto à aprovação de um programa de um governo liderado por outra figura da Aliança Democrática, a coligação PSD/CDS-PP que venceu as legislativas de 10 de março de 2024.
No último governo socialista, Marcelo não só acenou várias vezes com o "fantasma" da dissolução, caso António Costa deixasse o executivo para ocupar um cargo europeu, como fechou a porta à nomeação de Mário Centeno sugerida pelo então primeiro-ministro, aquando da sua demissão na sequência de uma investigação do Ministério Público à instalação de um centro de dados em Sines, o denominado processo Influencer.
Apesar de não ter até agora falado expressamente em eleições, o Presidente da República prometeu agir o mais depressa possível, chamando os partidos a Belém e reunindo o Conselho de Estado, para chegar a um "calendário eleitoral" que aponta para meados de maio.
Com a terceira dissolução da Assembleia da República, Marcelo Rebelo de Sousa iguala o recorde de Ramalho Eanes no uso da chamada "bomba atómica". Desde a revolução de 25 de Abril de 1974, o parlamento nacional vai a caminho da 10.ª dissolução, três de Ramalho Eanes, duas de Marcelo, duas de Jorge Sampaio, uma de Cavaco Silva e outra de Mário Soares.
Marcelo Rebelo de Sousa decretou a primeira dissolução do parlamento em dezembro de 2021, face ao chumbo do Orçamento do Estado, e a segunda em janeiro de 2024, após a demissão de António Costa do cargo de primeiro-ministro, por causa da Operação Influencer, quando chefiava um Governo do PS com maioria absoluta no parlamento.
Nos nove anos em Belém, oito foram de coabitação com António Costa à frente do PS e do executivo, o que o levou a desabafar, já no consulado de Montenegro: "Éramos felizes e não sabíamos". O anterior primeiro-ministro tornou-se entretanto presidente do Conselho Europeu.
Após dar posse, em 02 de abril do ano passado, ao XXIV Governo Constitucional, ao qual prometeu apoio "solidário e cooperante", Marcelo Rebelo de Sousa empenhou-se em "criar um clima favorável à passagem do Orçamento" do Estado, sem revelar o que faria se fosse chumbado.
No decurso das negociações orçamentais, em outubro, reuniu o Conselho de Estado para analisar a situação económica e financeira e cancelou idas ao estrangeiro. O Orçamento do Estado para 2025 foi viabilizado na generalidade e em votação final global com a abstenção do PS liderado por Pedro Nuno Santos, e o Presidente da República promulgou-o de imediato.
Sem qualquer problema conhecido na coabitação com Luís Montenegro, Marcelo acabou por ser beliscado por umas polémicas declarações à imprensa estrangeira em Portugal, quando disse que o atual primeiro-ministro "dá muito trabalho" e tem "comportamentos rurais". "Vem de um país profundo, urbano-rural, com comportamentos rurais". Para Marcelo, Montenegro "é muito curioso, difícil de entender, precisamente por causa disso".
Ultimamente, o Presidente da República tem-se mostrado apreensivo com a conjuntura global, designadamente com a postura da nova administração norte-americana de Donald Trump e a sua aproximação à Rússia e distanciamento da Ucrânia, não poupando críticas públicas ao inquilino da Casa Branca.
Após um primeiro mandato em que se revelou um dos presidentes mais populares, o "Presidente dos afetos", que criou uma empatia grande com os portugueses, tem visto diminuir as apreciações positivas à medida que se aproxima o fim da sua estada em Belém.
Para isso terá contribuído o caso de duas gémeas luso-brasileiras com atrofia muscular espinhal tratadas no Hospital de Santa Maria com um dos medicamentos mais caros do mercado, que continuou na agenda política em 2024 e 2025, através de uma comissão parlamentar de inquérito da iniciativa do partido Chega e que em breve aprovará as conclusões.
Envolvido neste caso por intermédio do seu filho, Nuno Rebelo de Sousa, que foi constituído arguido, o chefe de Estado acabou a criticá-lo em público e a referir que estavam de relações cortadas. Não sendo obrigado a depor na comissão de inquérito, não excluiu voltar a pronunciar-se sobre o assunto, uma vez terminadas todas as audições.
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