"A nossa relação com as redes sociais tem de ser não acreditar em nada"

O especialista Gustavo Cardoso é o convidado desta quarta-feira do Vozes ao Minuto, entrevista onde se debruçou sobre as recentes mudanças anunciadas pela Meta para as redes sociais, no contexto das últimas eleições norte-americanas, tentando, ainda, levantar a cortina sobre qual será a relação futura entre as redes sociais e a verdade.

Notícia

© Gustavo Cardoso

Miguel Patinha Dias
29/01/2025 08:02 ‧ há 2 dias por Miguel Patinha Dias

Tech

Entrevista

De uma forma ou de outra, a eleição de um novo presidente dos EUA tem sempre impacto no resto do mundo mas, no caso da segunda vitória de Donald Trump, a influência chegou também às redes sociais mais utilizadas.

 

Depois de uma relação conturbada entre Trump e o cofundador e CEO da Meta, Mark Zuckerberg, a vitória do candidato republicano levou o líder da gigante tecnológica a reunir-se com o novo presidente dos EUA e também a doar uma ‘pequena fortuna’ para a tomada de posse do passado dia 20 de janeiro - um evento que contou com a presença dos líderes de algumas da maiores tecnológicas do mundo.

Entretanto, a Meta anunciou grandes alterações para a moderação de conteúdo das suas redes sociais, mais especificamente para o Facebook, Instagram e Threads - admitindo até a influência do poder político. Eliminando os ‘fact-checkers’, a Meta anunciou a adoção das Notas da Comunidade do X e também avançará com alterações das regras em torno do discurso de ódio que, por exemplo, permitem que mulheres sejam consideradas “propriedade” e que pessoas homossexuais ou trans possam ser alvo de alegações de “doença mental ou anormalidade”.

De momento, estas alterações foram apenas anunciadas para os EUA, sendo que outros países - como o Brasil, Espanha e França - já expressaram preocupação e manifestaram a intenção de uma regulação mais apertada para as plataformas digitais.

Foi para sabermos mais sobre os acontecimentos das últimas semanas que o Notícias ao Minuto falou com Gustavo Cardoso - professor catedrático e diretor da Pós-Graduação em Factchecking e desinformação no ISCTE-IUL. Além disso, Gustavo Cardoso também foi consultor para a política da Sociedade da Informação e das Telecomunicações do Presidente da República Portuguesa, Jorge Sampaio, entre 1996 e 2006, tendo sido também condecorado com o grau de Grande Oficial da Ordem do Infante D. Henrique.

Na entrevista, Gustavo Cardoso tece considerações não só sobre a mudança de política de moderação da Meta, como também sobre as escolhas com que a Europa se depara para os próximos tempos, o que se pode esperar das redes sociais e ainda sobre a aproximação do dono do X, Elon Musk, ao poder político.

Antes havia esta consonância entre os interesses do Facebook: o interesse da maior parte dos governos e o interesse da proteção das pessoas. Isso terminou com esta eleição de Donald Trump

Comecemos com a primeira eleição de Donald Trump, que ficou marcada por campanhas de desinformação no Facebook com origem fora dos EUA. Após estas eleições, vimos a Meta a implementar uma série de medidas e salvaguardas para impedir que futuros processos eleitorais estivessem vulneráveis a estas campanhas. Na visão do Gustavo, as mudanças anunciadas recentemente pela Meta constituem uma reversão desta política?

Bem, acho que a primeira coisa que temos de ter presente é que estamos a falar de empresas e as empresas têm como objetivo o lucro. As empresas que vivem da reputação - como os bancos, as redes sociais e os órgãos de comunicação social - têm uma grande preocupação com o que pode atingir a sua integridade no que diz respeito a serem fiéis aos princípios, aos seus produtos e à confiança que querem criar em relação às pessoas.

Aquilo que aconteceu com a Meta na altura da primeira eleição de Trump foi a necessidade das redes sociais dizerem: "Nós aceitamos que pode ter havido problemas connosco, é o nosso papel proteger para que esses problemas não se repitam". Tudo o que vimos após a entrada de Trump foi para criar confiança junto dos eleitores - sendo que também não nos podemos esquecer de todos os escândalos que se seguiram com a Cambridge Analytica - para garantir que tudo estava bem com os utilizadores e também com a proteção das instituições nos países onde o Facebook estava presente. [...]

As decisões foram tomadas do ponto de vista económico - assegurando obviamente a estabilidade para as democracias - mas essencialmente respondendo à ideia de que uma rede social não pode ser colocada em causa no seu modelo de negócio pelo uso indevido de terceiros. Em cima disto, houve ainda uma outra coisa que foi fundamental: a associação entre a má utilização das redes sociais por parte da ação de estados terceiros - neste caso da Rússia. Independentemente da posição da altura de Donald Trump e da proximidade com a Rússia, a questão fundamental foi dizer que não podíamos deixar que estados terceiros se intrometam nos processos democráticos de outros países. Isto foi sempre uma questão de confiança.

O que aconteceu a seguir? Antes de chegar até aqui tivemos outro momento: o Covid. Com a pandemia houve mais uma vez a necessidade de garantir, em termos de grande consenso alargado de saúde pública, que, além de não serem usadas para prejudicar processos eleitorais, as redes sociais não seriam utilizadas para fazer mal às próprias pessoas. Houve a necessidade de as redes sociais se associarem, de alguma maneira, aos sistemas de saúde dos diferentes países para defenderem as populações - independentemente do Bolsonaro e do Trump e das histórias como a lixívia.

Antes havia esta consonância entre os interesses da plataforma: o interesse da maior parte dos governos e o interesse da proteção das pessoas. Isso terminou com esta eleição de Donald Trump…

É óbvio que todas as redes norte-americanas alinharam o diapasão. Não foi porque Elon Musk o fez, foi porque ninguém quer ficar fora do ‘barco’

A minha pergunta ia precisamente nesse sentido. Após o 6 de janeiro e de Trump ter sido bloqueado nas redes sociais da Meta, parece que houve uma reaproximação com Zuckerberg. Recordo que Trump chegou a ameaçar Zuckerberg com pena de prisão se voltasse a tornar-se presidente dos EUA. O que mudou?

Posso dizer isto porque, publicamente, já o disse: acho que naquela altura era necessário tirar Donald Trump das redes sociais, porque era um perigo para a democracia naquele contexto. Mas não faz sentido não criar uma regra geral para todas as situações idênticas.

O que estamos a ver agora é as redes sociais dizerem: "Bem, temos um novo presidente. Agimos naquele momento porque havia um novo poder e agora o velho poder voltou". Aquilo que estamos a falar aqui tem de ser olhado pura e simplesmente a partir do ponto da política e economia interna dos EUA. Não interessa se os EUA são o país mais poderoso e com a economia mais forte do planeta, o que interessa é que isto se decide por razões internas relativas às empresas e às políticas seguidas.

A partir do momento em que Trump ganha novamente e que se posiciona com a tradição histórica norte-americana de proteção da liberdade de expressão ao abrigo da Primeira Emenda da Constituição e ser esse o argumento mais valorizado. Aquilo que nos foi colocado em cima da mesa no contexto político foi: "Com Biden havia a preocupação com a desinformação, nós estamos preocupados com a liberdade de expressão. Vocês, redes sociais, acompanham-nos nesta preocupação?"

É óbvio que todas as redes norte-americanas alinharam o diapasão. Não foi porque Elon Musk o fez, foi porque ninguém quer ficar fora do ‘barco’ da proteção do estado norte-americano para o seu negócio à escala global.

O que é isso significa para a Europa?

Claro que isto traz outra questão: como é que é ser europeu num mundo de redes sociais norte-americanas? Apesar de valorizarmos a liberdade de expressão, a nossa tradição não é a mesma da dos EUA. Por exemplo, nos EUA é possível ter um discurso claramente nazi e não lhe ser retirada a sua liberdade porque é a liberdade de expressão da pessoa. Em alguns países europeus, como a Alemanha, é algo proibido e são países que também têm uma grande preocupação com a liberdade de expressão.

Portanto, nós temos impedimentos diferentes. A questão que se coloca é saber se, com empresas à escala planetária, é possível ter dois tipos de funcionamento. Eu acho que será difícil, até porque aquilo que vai acontecer é que estaremos a negociar os carros europeus ao mesmo tempo que as redes sociais norte-americanas. Ou seja, o pacote de negociações entre os EUA e a União Europeia vai meter isto tudo.

Há ainda outro problema ainda: não sabemos a extensão do retirar dos apoios privados das redes sociais a toda a dinâmica de ‘fact-checking’ europeia. Hoje em dia uma parte substancial dos ‘fact-checkers’ funcionam com fundos angariados pelas próprias instituições, com fundos estatais ou europeus e com fundos das grandes plataformas.

Se estas plataformas se retirarem do financiamento do ‘fact-checking’, uma parte substancial do modelo de negócio destas destas entidades é colocado em causa. Assim como fica, por exemplo, a investigação. Não sabemos até que ponto é que as várias ferramentas usadas pelos investigadores para saberem o que se passa nas redes sociais norte-americanas serão mantidas. A grande razão para a existência destas ferramentas - que permitem, por exemplo, que uma universidade portuguesa possa aceder e analisar os conteúdos do Facebook ou do Instagram - tem sido, precisamente, a veracidade e o interesse que há em tentar criar um ambiente ‘livre’ de mentira e falsidade. Tem sido essa a abertura das plataformas para a investigação.

As situações onde são partilhadas opiniões incorretas tornam-se verdadeiramente importantes em que momento? A resposta é sempre a mesma: quando há uma entidade política a partilhá-las

A Meta já referiu que pretende substituir os ‘fact-checkers’ que tem usado até aqui por uma solução semelhante à que o X de Elon Musk emprega para moderar conteúdos - as Notas da Comunidade. Na opinião do Gustavo, com experiência na área da investigação e das telecomunicações, qual é o método mais eficaz ou a melhor solução? Os utilizadores regularem o próprio discurso ou termos uma entidade ‘omnipotente’ que se ocupa de o fazer?

É uma discussão difícil, porque tem vários planos. O primeiro problema é identificar de onde surgem as ameaças contidas na desinformação. Se existirem essas ameaças, quais são aquelas que são reguladas pela própria lei? Existem uma série de leis nos EUA e na Europa que impedem as pessoas de dizerem ou comunicarem certas coisas.

Por exemplo, se alguém publicar um vídeo de uma pessoa a matar outra, é óbvio que a lei é acionada sobre a pessoa que partilha o conteúdo e sobre a pessoa que cometeu a ação. Não estamos a falar do que é ilegal - estamos a falar daquilo que são opiniões, mesmo que não sejam as corretas. As situações onde são partilhadas opiniões incorretas tornam-se verdadeiramente importantes em que momento? A resposta é sempre a mesma: quando há uma entidade política a partilhá-las. Porquê? Porque aquilo que circula tem muito pouco valor para as pessoas se não estiver associado a uma cara conhecida. Normalmente, para os EUA e para os países europeus o problema está quando há figuras públicas ou políticos que, de repente, se advogam bandeira de determinado tipo de conteúdo sobre  que quer que seja. Nós estamos habituados a falar destas coisas no contexto de eleições, mas pode haver outras dimensões que sejam igualmente prejudiciais - quer seja ao nível das bolsas ou funcionamento de mercados. O que nós sabemos é que, sem a associação de uma cara conhecida que tenha uma credibilidade que lhe é atribuída, o impacto da desinformação é muito menor. 

Depois temos as entidades políticas que não têm cara. Estamos a falar de estados, normalmente do interesse de terceiros numa situação de guerra - como aquela em que nos encontramos agora - mas há outros atores neste contexto. Nesta situação, os próprios estados estão a atuar nas redes sociais também em combate. Aquilo que (supostamente) levou à eleição de Donald Trump na primeira vez leva as próprias agências de informação do estados a atuar no território numa guerra de propaganda, que sempre existiu e agora com outros meios.

O problema central aqui tem que ver com os atores políticos que vão dar visibilidade a determinadas questões que podem ser benéficas para eles, mas são prejudiciais para a sociedade num todo. Nesse caso as Notas da Comunidade não funcionam, porque vamos ter sempre pessoas que apoiam determinado lado e outras que são contra. Temos de ter um juiz a decidir sobre isso e, nessa perspetiva, este juiz ou é uma entidade terceira - que pode ser uma entidade judicial de um determinado país e que proíbe, como já aconteceu no Brasil - ou então, se for um país em que ninguém ligue muito porque é demasiado pequeno, como Portugal, pura e simplesmente pode ser possível que não aconteça nada. Agora, como é que esse país lida com isso? Provavelmente os países continuarão a ter de recorrer a entidades dentro de sistema, como o ‘fact-checking’ que vai continuar a ser importante. Porque é credível e vai poder continuar a alertar as pessoas.

Mas, estamos efetivamente a caminhar para um mundo diferente daquele que tínhamos. Temos de nos começar a habituar que não existe uma solução mágica para este problema e que vamos estar a viver num mundo onde não se pode ver, ouvir ou ler para crer. Tem de se ter sempre a dúvida sobre aquilo em que se pode acreditar ou não, que é o oposto da lógica em que temos funcionado até aqui - da existência de editores, para o jornalismo, e de editoras, para outro tipo de conteúdos - onde havia uma certificação prévia sobre aquilo que circulava.

Se as plataformas se retiram desse papel de certificação prévia, aquilo que temos é um mundo diferente e vamos ter de nos habituar a viver com ele.

Por princípio, a nossa relação com as redes sociais tem de ser não acreditar em nada do que se vê, ouve ou lê. Essa é a única maneira de viver neste contexto

Então, na sua visão, o que é que as pessoas na Internet podem esperar para o futuro no Facebook, no Instagram e na Threads? Qual será a forma correta de estar na Internet?

Acho que vamos ver mais coisas do que aquelas que víamos, porque vão estar mais ‘à solta’ e vamos estar mais expostos do que até aqui. Vamos ter de ter um posicionamento mais crítico sobre as coisas que vemos. Por princípio, a nossa relação com as redes sociais tem de ser não acreditar em nada do que se vê, ouve ou lê. Essa é a única maneira de viver neste contexto. Isto é uma transformação natural das sociedades. Não é brincadeira!

Mas nós estamos na Europa, é preciso perceber o que a União Europeia vai negociar com as plataformas e se elas terão uma atitude para os EUA e outra para o resto do mundo. Tradicionalmente, tem sido sempre assim e há algoritmos que podem funcionar para a América e outros para o resto do mundo. Ainda estamos em aberto, as coisas não podem ficar tal como estão, mas também é difícil que fiquem iguais às da América. Vamos estar em busca de um novo equilíbrio de funcionamento, mas é muito difícil dizer qual será uma vez que ainda não houve negociação alguma.

 A percepção do fenómeno de Donald Trump e de uma divisão forte dos EUA é para continuar. Portanto, a opção aqui é estar do lado do poder, de quem manda, de quem tem o dinheiro e de quem faz a regulação do mercado

Referiu que o que aconteceu após a primeira eleição de Donald Trump foi um pouco diferente daquilo que aconteceu nesta segunda eleição. Se da primeira vez houve uma atitude da Meta de responsabilidade no que diz respeito a desinformação, desta tivemos a Meta a ir ao encontro do presidente dos EUA. Tratando-se de uma empresa que procura o lucro, admitimos que a decisão na primeira eleição teve como objetivo garantir a rentabilidade a longo-prazo com a criação de proteções. O que mudou na sociedade para a Meta decidir, nesta segunda eleição, que a decisão mais proveitosa a longo prazo é estar do lado de Trump?

Na primeira eleição de Donald Trump achava-se que a sociedade norte-americana estava dividida, mas que isso tinha sido um acaso e que não aconteceria novamente. Quando Joe Biden ganha as eleições, achou-se que Trump tinha sido um episódio que não se repetiria e, portanto, do ponto de vista das redes sociais estava tudo bem, que tinham feito aquilo que era necessário fazer naquele momento e que tinham a razão com o seu posicionamento.

Aquilo que acabou por acontecer foi que a percepção do fenómeno de Donald Trump e de uma divisão forte dos EUA é para continuar. Portanto, a opção aqui é estar do lado do poder, de quem manda, de quem tem o dinheiro e de quem faz a regulação do mercado. A resposta para a Meta é basicamente esta: existe uma parte da população norte-americana que não votou em Donald Trump mas, do ponto de vista cultural, a população norte-americana como um todo percebe a questão da liberdade de expressão e da Primeira Emenda como dimensões fundamentais.

Aquilo que a Meta está a dizer é que está de acordo com a Constituição dos EUA, ao mesmo tempo que assegura o ambiente mais favorável do ponto de vista comercial. É o melhor dos dois mundos para a Meta e, provavelmente, não será o melhor dos dois mundos para a Europa… Tirando os partidos que têm pessoas que fazem uso de desinformação. Para eles é bom. Mas ainda teremos de ver se o que se aplica aos EUA também se aplicará à Europa.

O ‘fact-checking’ atua sobre o comportamento das pessoas, mas o problema é o aproveitamento político destas coisas todas. Devemos atuar sobre os políticos e figuras públicas

Além da desinformação, também temos assistido à escalada de discurso de ódio nas redes sociais e, dado que é uma questão com mais ‘nuances’, a moderação é mais complexa e faz com que os internautas percam a confiança nesta abordagem. As empresas que detém as redes sociais terão ido longe demais na moderação do discurso de ódio ou poderiam ter feito algo mais?

Em termos pessoais e científicos, tenho alguma dificuldade em separar discurso de ódio da desinformação. O discurso de ódio tanto pode ser discurso baseado em caraterísticas de uma pessoa - como ser magra ou gorda - como naquilo que é a sua cultura. Tanto discurso de ódio como desinformação estão assentes numa lógica de distorção.

Eu posso insultar qualquer pessoa, dentro daquilo que é aceite no limite do insulto. Onde é que esse limite é estabelecido na lei que rege a relação entre as pessoas de um determinado estado? A questão da regulação volta a ser a mesma. O que estamos aqui a discutir sobre discurso de ódio sempre foi uma área bastante ‘movediça’, tanto que foi aquela em que as próprias plataformas nunca chegaram a um entendimento correto. Porque também é impossível de o fazer. Há nuances linguísticas e são muito difíceis de lidar.

Mas, mais uma vez, quando o discurso de ódio ganha proporções diferentes é quando é apropriado por figuras públicas que o usam em defesa da sua posição. Mais uma vez, é preciso tratar da mesma forma que a desinformação: traçar limites e chamar a atenção. É muito difícil em todas as dimensões culturais, em particular quando há discurso de ódio associado, chegar à conclusão sobre onde está a tolerância do aceitável ou não. Nestes casos, aquilo que tem acontecido nas diferentes comissões nacionais de eleições dos diferentes países é chamar a atenção e colocar dúvidas sobre se tal questão é aceitável. E acho que é isso que é necessário continuar a fazer.

Mas não vamos tornar a humanidade mais justa e perfeita. Ou seja, é um caminho permanente de progresso e não é algo que seja possível de colocar em cima da mesa por via da introdução de políticas de ‘fact-checking’. O ‘fact-checking’ atua sobre o comportamento das pessoas, mas o problema é o aproveitamento político destas coisas todas. Devemos atuar sobre os políticos e figuras públicas que fazem uso de técnicas políticas de ‘spin’ utilizando discurso de ódio e desinformação. A preocupação não deve ser o cidadão no seu conjunto, mas sim essas pessoas que têm maior visibilidade e também mais responsabilidade.

As pessoas vão continuar a insultar-se e a dizer simpáticas umas às outras porque são seres humanos. A questão é saber quando isso é usado para fins políticos, que não têm a ver com a relação com as pessoas, mas sim com a conquista de poder. Aí, acho que temos de ter capacidade de atuar e acho que temos as legislações necessárias.

Mas isso é a forma como tudo tem funcionado até agora a nível nacional. A justiça demora tempo, mas a opção é sempre o mundo civilizado e não civilizado. O segundo é aquele que retira automaticamente a voz a uma pessoa, o primeiro é aquele que demora tempo até que as injustiças sejam corrigidas.

O Gustavo já afirmou que o problema da decisão da Meta em ter bloqueado Donald Trump foi o facto de ter sido uma ação dirigida a uma pessoa específica. No entanto, diz também que o problema está no aproveitamento de figuras políticas do mesmo discurso que levou ao bloqueio. Qual é a abordagem correta?

Se tivessem feito uma regra para todos os políticos ou figuras públicas não tinhamos esta questão. Temos porque foi uma decisão aplicada a uma única pessoa. Depois disso tivemos situações em que o mesmo critério não foi aplicado… Provavelmente com outros políticos.

Como os estados não tinham capacidade de implementar um conjunto de coisas, colocaram a responsabilidade do lado das plataformas. Mas isto é uma lógica que tinha os dias contados

Então acha mesmo que os políticos e figuras públicas deviam ser mais responsabilizados por aquilo que dizem neste tipo de plataformas?

Claro, porque quem exerce o poder tem sempre mais responsabilidade do que os restantes cidadãos. É ouvido por mais pessoas, portanto tem mais responsabilidade. A razão pela qual quando alguém cujo papel é criar um modelo de como as coisas devem ser atua mal deve ser igualmente responsabilizado é para se perceber que não é essa a forma de fazer as coisas.

Nós não vamos criar um mundo hiper disciplinado - nem nas ruas, nem nas casas. É impossível! Agora, tudo aquilo que é ilegal e tudo aquilo que está mal deve ser combatido, de acordo com o quadro legal, com justiça e com entidades que podem atuar, mas dentro de uma lógica que é aceitável.

Aquilo que tivemos até agora foi uma lógica que, como os estados não tinham capacidade de implementar um conjunto de coisas, colocaram a responsabilidade do lado das plataformas. Mas isto é uma lógica que tinha os dias contados, porque não é possível (nem desejável) controlar a voz de todas as pessoas em simultâneo. É impossível! Sempre foi a lei a justiça a dar o exemplo, em todos os tempos.

O que não pode acontecer alguém da política ter mais direitos do que os outros. Tem de ter os mesmos, assim como mais responsabilidade e, em função daquilo que faz, que o exemplo tem de ser dado aos restantes.

Acha então que, por esta lógica, a Lei dos Serviços Digitais de combate ao discurso de ódio pode ser importante ou é preciso algo diferente?

Acho que é importante. Esta lei baseia-se na ideia de que as redes sociais vão resolver os problemas sempre que eles sejam colocados em cima da mesa, mas aquilo que as redes sociais estão a dizer é que não são responsáveis por tudo aquilo que se passa nas respectivas plataformas. E, nos EUA, dizem que não são responsáveis porque há uma coisa chamada liberdade de expressão e uma Primeira Emenda que não querem violar.

A pergunta em aberto é perceber se tudo aquilo que foi criado sobre a dimensão digital da Europa nos diferentes blocos legislativos - desde a Inteligência Artificial até ao comércio - pode ser implementado e se os estados têm capacidade de implementar essa ação. O problema é como fazer isso à escala global.

Até agora temos aplicado multas às entidades quando não cumpriam aquilo que deviam cumprir na Europa. Neste momento mudou a lógica de funcionamento das plataformas e mantiveram-se as leis na Europa. Vamos ver se as mudanças vão cá chegar ou se isto vai continuar.

Acho que estamos a misturar imensas coisas. Estamos a misturar atitudes por parte de um homem de negócios que é Elon Musk, que tem interesse em criar novas posições de equilíbrio de poder com a indústria automóvel europeia. Ele não é um político. É alguém que está a fazer dinheiro e usa a política para fazer mais dinheiro.

Aquilo que Elon Musk fez não foi comprar um jornal e sim uma rede social, mas comprou-a pela mesma razão que os milionários normalmente compram jornais, rádios ou televisões: para dizer que fazem parte do clube daqueles que têm armas atómicas que não vão ser usadas

Falemos então sobre Elon Musk. Desde o final de 2022, quando Musk tomou controlo do Twitter, que temos assistido a uma espécie de ponto de viragem. Musk despediu a equipa de moderação e temos assistido a um escalar de desinformação e de discurso de ódio no agora X. Temos agora a percepção de assistir a uma adesão a este tipo de discurso, com mais partidos e organizações de extrema-direita a terem mais espaço no panorama digital. Como é que olha para o ‘efeito’ de Musk no mundo digital e real e porque é que é uma figura tão apetecível?

Elon Musk tem influência porque comprou a rede social onde tinha mais seguidores. Mas não é atípico termos milionários a comprarem jornais ou rádios. Nestas eleições vimos que, mesmo que não haja interferência direta da parte dos proprietários, há limites para aquilo que os proprietários dos órgãos de comunicação social estão disponíveis para aceitar. Limites, por exemplo, para o The Washington Post - que é propriedade do dono da Amazon, Jeff Bezos - que foi impedido de tomar uma posição de apoiar um dos candidatos [às eleições presidenciais]. Essa intervenção simbólica, esse poder, existe sempre da parte de quem é o dono - independentemente do tipo de empresa de que estamos a falar.

Aquilo que Elon Musk fez não foi comprar um jornal e sim uma rede social, mas comprou-a pela mesma razão que os milionários normalmente compram jornais, rádios ou televisões: para dizer que fazem parte do clube daqueles que têm armas atómicas que não vão ser usadas.

O investimento num sector que não dê lucro só tem uma justificação, que é o exercício do poder. Mesmo que seja um poder que não é usado, é só para dizer: "Eu tenho. Se for preciso uso". É uma ameaça velada que não tem relação direta com os jornalistas que estão a trabalhar. Mas é assim que é entendido na relação entre o proprietário e o político.

O que Elon Musk fez foi uma coisa parecida, mas diferente. Qual é a arma atómica de uma rede social? Basicamente é controlar a informação que circula de modo a que ela seja toda orientada no sentido que a pessoa que é dona quer. E isso não é o que Elon Musk está a fazer. Ele retira a base de controlo de informação, mas como ele próprio tem seguidores tem o poder simbólico de estar associado ao X, em momentos faz uso daquilo que escreve quando isso está relacionado com algum interesse seu.

Ele está numa posição claramente vantajosa sobre todos os seus concorrentes mais diretos, sejam eles donos de redes sociais, de marcas automóveis, de foguetes espaciais ou de redes de comunicação de satélite. Portanto, ele está numa posição em que não tem concorrentes diretos e está a usar em benefício próprio e, em algumas situações, mascarado de benefício para o país que o acolheu - neste caso dos EUA.

Acho que quando se fazem interpretações demasiado políticas de Elon Musk se está a cometer um erro. Porque as suas atividades políticas estão relacionadas com os seus objetivos económicos. Ele não está aqui para ser eleito… Pode ser que algum dia se queira candidatar. Mas está aqui para fazer dinheiro, para aumentar a sua fortuna.

Ele faz uma entrevista à líder da AfD da Alemanha porque este país é o seu maior concorrente industrial na produção de automóveis. Interessa-lhe desestabilizar um pouco mas, dado que também tem uma fábrica da Tesla na Alemanha, também lhe interessa ter mais vantagens. [...]

Se Elon Musk vier a comprar o TikTok, isso será algo que tem a ver com os acordos necessários entre as economias chinesa e a norte-americana. Porque tem de se encontrar alguém que faça o equilíbrio entre as duas partes.

A Comissão Europeia fez um pedido a Elon Musk para que entregasse o algoritmo do X para que pudesse avaliar a forma como a rede social recomenda conteúdo aos seus utilizadores. Esta é uma atuação que a Europa deve ter?

A Europa está a utilizar as armas que tem. Embora, se mudássemos o contexto e estivesse a ser pedido à Coca-Cola para revelar a sua fórmula, a pergunta seria: revela-se a fórmula?

Leia Também: Bill Gates não poupa críticas a Elon Musk. "Isto é uma loucura"

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