Cães em romance 'Simpatia' são "um símbolo do desamparo" na Venezuela

'Simpatia', romance do venezuelano Rodrigo Blanco Calderón, usa a metáfora dos cães abandonados para falar da crise venezuelana e do êxodo em massa, a par de uma reflexão sobre o verdadeiro conceito de família.

Notícia

© Pixabay

Lusa
23/02/2025 14:46 ‧ há 5 horas por Lusa

Cultura

Rodrigo Blanco Calderón

'Simpatia', segundo romance de Rodrigo Blanco Calderón e primeiro editado em Portugal, pela Dom Quixote, nomeado para o Prémio Booker Internacional 2024, tem uma descrição, logo nas primeiras páginas, de uma quantidade enorme de cães famintos e escanzelados, a deambular pelas cidades, abandonados pelos seus donos, que abandonaram, eles próprios, o seu país.

 

Este é o retrato desolado de um país que chegou ao cúmulo da miséria e do caos e dos venezuelanos que partiram antes de tudo 'bater no fundo', vendo-se obrigados a deixar para trás os seus animais de estimação.

"No princípio [do romance], para mim, eram os cães, preocupava-me e continuo a preocupar-me com a situação do abandono dos cães. Também sabia que era uma forma diferente de abordar o problema do êxodo maciço de venezuelanos da crise venezuelana. Mas a verdade é que, enquanto escrevia, o abandono dos cães se transformou noutra coisa, de alguma maneira maior, numa imagem de um abandono maior, que foi o do meu país, de uma sociedade que foi abandonada pelo seu próprio Governo, que foi abandonado pela comunidade internacional e que foi abandonado pelos próprios venezuelanos, que tiveram de o fazer", contou o escritor em entrevista à agência Lusa, durante o encontro Correntes d'Escritas, na Póvoa de Varzim.

Nascido em Caracas, em 1981, Rodrigo Calderón vive exilado em Espanha, depois de ter completado o seu doutoramento em literatura e linguística, em Paris.

No seu romance, a imagem dos cães é "um símbolo do desamparo" na Venezuela, mas no início não era tão claro e, embora lendo a história a analogia "pareça óbvia", para Rodrigo Calderón, "era algo mais concreto", a preocupação com os cães.

A personagem principal do romance, Ulisses, mora em Caracas no apartamento da mulher e dá aulas num 'workshop' de cinema, mas tem cada vez menos alunos.

Paulina - que nunca quis filhos e tampouco lhe permitiu ter um cão - decidiu ir-se embora do país, e quando tudo começava a desmoronar-se na vida de Ulisses, o seu sogro, o general Martín Ayala, que em tempos foi próximo de Hugo Chávez, deixa-lhe em testamento o enorme casarão da família, com o compromisso de que ali seja criada uma fundação que acolha, trate, alimente e, se necessário, dê até sepultura a todos os cães abandonados de Caracas.

Na escolha do nome do protagonista da história, "a referência a Homero é muito direta e algo feito conscientemente", que decorre do gosto de Rodrigo Calderón pela "literatura que fala sobre literatura", por "citar livros, citar autores".

"Muitas das minhas personagens são escritores ou leitores. Para mim, é muito natural fazer essas referências. Pensei em Ulisses, a personagem de Homero, e no seu cão Argos. Não pensei tanto na 'Odisseia' como uma viagem, e é por isso que a minha personagem Ulisses não viaja, está amarrado à terra".

No entanto, o autor reconhece que há um outro lado desta personagem enraizada "que viaja através das pessoas que o rodeiam, há uma parte dessa personagem que se liga ao Ulisses de Homero, no sentido em que consegue negociar, pôr-se de acordo com as pessoas para conseguir o que quer".

Mas este acaba por ser também um romance sobre a família, porque, no início, era claro para o autor que Ulisses era órfão, mas não sabia que iam aparecer mais órfãos ao longo da história, o que acaba por se constituir como outra metáfora do abandono do país.

"Quando estava a acabar de escrever o primeiro capítulo, a mulher de Ulisses tenta compreender por que razão o seu marido e o seu pai se entendem tão bem, quando o pai não fala com ela. Nessa altura, Paulina diz-lhe 'Ah, é que entre órfãos entendem-se'. Quando escrevo esta frase, estou a descobrir que esse general Martin Ayala também era órfão", revelou.

A partir dessa descoberta, "começaram a aparecer mais órfãos e o romance seguiu uma direção que se interroga sobre a família, sobre o que faz realmente uma família, e aí, volta a imagem dos cães. Os cães são, por essência, órfãos, são retirados das mães e incorporados sem qualquer problema numa família. São abandonados várias vezes e têm a capacidade de, se forem tratados com carinho, voltar a amar. Essa imagem, para mim, foi muito forte e Ulisses chega ao final do romance sem entender muito bem o que é ter uma família. Essa é uma pergunta que fica aberta".

O título 'Simpatia' advém em grande parte dessas ligações humanas, da necessidade universal de amor e de afeto, tanto de cães como de homens.

"É uma declaração de princípio. É um romance que fala da ligação entre as pessoas, na ligação com os animais, de como um grupo de pessoas se unem por um grande e bonito objetivo. E estes são os significados da palavra simpatia. Por isso, está na epígrafe do livro a definição da palavra retirada do dicionário, porque todos os significados de simpatia se aplicam ao romance".

Rodrigo Calderón vive há muitos anos exilado e, à semelhança de outros escritores venezuelanos, escreve sobre a realidade política e social do seu país a partir de fora.

Este é "um olhar de privilégio" - reconhece -, porque "vivendo fora da Venezuela posso viver, posso comer, posso trabalhar sem tantas preocupações como as que tinha quando vivia na Venezuela". "E é um privilégio porque me permite publicar e participar em reuniões como esta, que, vivendo na Venezuela, seria bastante difícil".

Há muitas coisas que o escritor pensa que a distância lhe permite compreender, e que "alguém que vive na Venezuela não pode ver", mas há também uma parte importante da vida quotidiana na Venezuela, que conhece de forma indireta, através de amigos, através de notícias e através da sua família.

Neste romance, deu-se conta de que não o queria fazer do ponto de vista de alguém que partiu, mas sim de alguém que ficou, "porque os que ficaram, que são a maioria, têm um sentimento de desenraizamento tremendo, de abandono, de solidão, e é um sentimento compartilhado".

"As pessoas falam muito sobre aqueles que emigraram, e com razão. Somos mais de oito milhões de venezuelanos, mas esquecemo-nos de falar dos que ficaram".

Leia Também: 'Rock NO Rio Febras' em Guimarães anuncia dois dias de festival em julho

Partilhe a notícia

Escolha do ocnsumidor 2025

Descarregue a nossa App gratuita

Nono ano consecutivo Escolha do Consumidor para Imprensa Online e eleito o produto do ano 2024.

* Estudo da e Netsonda, nov. e dez. 2023 produtodoano- pt.com
App androidApp iOS

Recomendados para si

Leia também

Últimas notícias


Newsletter

Receba os principais destaques todos os dias no seu email.

Mais lidas