Médica, republicana e sufragista, Carolina Beatriz Ângelo foi a primeira mulher a votar em Portugal nas eleições para a Assembleia Nacional Constituinte, em 28 de maio de 1911, aproveitando uma brecha na lei que definia como eleitores os cidadãos que soubessem "ler e escrever" e fossem "chefes de família".
Com formação superior e viúva, Carolina reunia as condições para votar, e assim fez.
Este foi o primeiro marco de um longo caminho que o movimento sufragista e feminista fez em Portugal até ao pleno acesso das mulheres (e homens) ao voto, cujos 50 anos são hoje assinalados na Assembleia da República numa sessão solene evocativa proposta pelo Livre.
"Por causa dessa ousadia, como na altura se chamou, a lei eleitoral em 1913 foi alterada, passando a designar como cidadãos eleitores apenas os do sexo masculino, para evitar que as mulheres recorressem a esse argumento semântico-jurídico do conceito de cidadão para exercerem o seu direito de voto", explicou à Lusa a investigadora do Instituto de História Contemporânea da Universidade NOVA-FCSH, Fátima Mariano.
A alteração à lei "frustrou as aspirações" das feministas, que tinham acreditado nas promessas do Partido Republicano Português, mas acalmou os anseios dos políticos republicanos, preocupados que "as mulheres votassem nos partidos mais conservadores e os afastassem do poder" num período conturbado a nível político e económico.
Em 1931, a ditadura militar concede o voto muito restrito -- condicionado por habilitações literárias ou lucros financeiros - a algumas mulheres "apenas para a eleição dos vogais das juntas de freguesia e das câmaras municipais, mas de facto há um voto já da mulher".
Utilizando o mesmo argumento dos republicanos para não conceder o direito ao sufrágio, o novo regime considerou que "dando o voto às mulheres conservadoras" isso iria legitimá-lo.
Na obra "Às Urnas. A reivindicação do voto feminino na Península Ibérica (1821-1934)" (Imprensa de Ciências Sociais, 2022), Fátima Mariano realça que, ironicamente, "as promessas que os homens da I República nunca cumpriram, apesar da insistência das associações sufragistas, seriam satisfeitas por um regime de cariz católico e antiliberal".
O Estado Novo, que "promoveu o retorno ao modelo tradicional de família, e impôs o regresso das mulheres ao lar e a glorificação do seu papel enquanto esposas, mães e donas de casa", tinha, contudo, um objetivo em mente.
"A aprovação do sufrágio feminino e a eleição das primeiras deputadas não surgiram como resposta às pressões das sufragistas, mas como forma de travar o feminismo laico e maçónico, de reorientar as mulheres para os valores cristãos (dos quais se tinham afastado) e de as controlar, remetendo-as de novo para o espaço privado e ocupando-as com atividades de natureza caritativa", é explicado na obra.
Neste contexto, foi em ditadura que foram eleitas as três primeiras mulheres deputadas (Domitila Hormizinda de Carvalho, Maria Cândida Parreira e Maria Guardiola) que tinham uma ação política restrita, não intervindo sobre "assuntos mais económicos ou financeiros".
Em 1968, é aprovada pela primeira vez uma lei que equipara o sufrágio feminino e masculino, exigindo a homens e mulheres os mesmos requisitos para votar, ainda com limitações.
Foi a Revolução dos Cravos, em 25 de Abril de 1974, que consagrou este direito em pleno. A Constituição de 1976 estabelece que "têm direito de sufrágio todos os cidadãos maiores de dezoito anos", sem distinções de sexo ou de outro tipo, algo que se mantém até hoje.
Interrogada sobre o facto de Portugal nunca ter tido uma mulher como Presidente da República ou primeira-ministra eleita, Fátima Mariano salientou que as tarefas domésticas e o cuidar da família ainda recaem muito sobre as mulheres, diminuindo o seu tempo.
"É verdade que já passaram 50 anos e que as coisas deveriam ter mudado se calhar um pouco mais, mas é um caminho que nós temos que continuar a percorrer e a batalhar todos os dias", afirmou.
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