Hiace é o nome popular dado às viaturas de transporte coletivo, por serem quase todas do mesmo modelo japonês, ligeiros que transportam 15 passageiros e ligam todos os cantos da ilha de Santiago, seja no vai-vem diário, entre casa e trabalho, seja nas viagens de fim-de-semana até junto da família.
Dezenas de hiaces estão alinhadas, todos os dias, no terminal improvisado junto ao Sucupira, principal mercado da cidade da Praia, na baixa da capital cabo-verdiana -- cada qual com a sua rota e em fila, à espera de passageiros para encher e seguir viagem.
"Mesmo com a fila organizada, que agora colocaram, há quem pergunte logo: qual a hiace que está a encher primeiro? Quando percebem que é um condutor que não põe música do agrado deles, preferem esperar por outro. E se for alguém que só põe notícias, ainda pior", diz Estevão Pereira, 53 anos, condutor há mais de uma década.
"Eu escolho as músicas ao olhar para os passageiros que vão entrando na hiace. Se forem jovens, já sei que ponho uma kizomba, enquanto os adultos vão mais para o funaná ou batuque, mas tudo tem de ser recente", explica à Lusa.
Numa ronda pelos motoristas, parece que o funaná lidera a lista dos pedidos: "é uma das maiores referências" da música tradicional cabo-verdiana (a par do batuco, finason, tabanca e morna), com um ritmo binário, entre o acelerado e o mais lento, associado ao acordeão, mais conhecido por gaita, em Cabo Verde.
"Quando coloco morna, dizem logo para trocar. Já não querem. Querem alegria na viagem. A música fideliza. Tenho três 'pen drives' com estilos diferentes e vou alternando", refere o condutor.
Os autorrádios estão preparados para as novas tecnologias, alguns com painéis digitais, tudo ligado a um sistema de som que chega a incluir potentes colunas entre os assentos.
Ramos Pires, 33 anos, tem listas de músicas prontas no YouTube, com "os lançamentos mais frescos do momento".
"Querem sempre música da moda. Morna? Já não gostam. Dizem que dá sono. Tem de ser mais agitado, música que anima" e a questão principal é que fideliza clientela.
"Todos os dias tenho os mesmos passageiros, porque dizem que ponho boa música. Chegam a discutir com outros condutores que colocam notícias e alguns dizem que, se não tiverem pressa, não viajam com eles", descreve.
José Costa, 48 anos, também é condutor e admite que ainda está a adaptar-se a esta nova geração de clientes.
"Gosto de música antiga, mas os passageiros querem novidades. Quando coloco uma coladeira da minha época, reclamam. Dizem logo: condutor, troca essa música, isso já não está na moda", conta, com uma gargalhada.
Carla Lopes, 29 anos, não viaja em qualquer hiace.
"Gosto de kizomba e do cotxi-pó", outro estilo musical cabo-verdiano, com ritmos ainda mais acelerados que o funaná, porque assim nem dá conta "do tempo passar", garante.
O preço da viagem "é fixo", por isso "a música é que pesa: se for boa, a viagem passa a correr".
Kenira Mendes, 26 anos, não reclama daquilo que toca nas hiaces, mas já assistiu a discussões.
"Há dias, uma rapariga pediu para trocar a música, porque não estava na moda. O condutor não quis e ela pediu para sair. Só ficou porque um passageiro mais velho a acalmou. Estava a tocar uma coladeira antiga", recorda.
A música pode ser mais importante do que se pensa no planeamento de uma viagem porque ajuda a criar um bom ambiente, entre 15 passageiros, num veículo ligeiro, descreve o sociólogo Henrique Varela, que conhece esta realidade.
"O momento da viagem pode tornar-se num momento de descontração. Quando a música agrada ao grupo que está no transporte, facilita a interação, cria proximidade e torna a viagem mais agradável" descreve à Lusa.
"É natural que a escolha musical acabe por refletir as preferências de certos grupos, que se identificam com determinados estilos", explica.
Os condutores já perceberam a tendência e hoje, além da competência ao volante, o sucesso nos transportes também depende de terem ouvido para escolher a "playlist" ideal até ao destino.
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