Joana Mortágua: "É imoral especular com casas enquanto há pessoas na rua"

Joana Mortágua, cabeça de lista do Bloco de Esquerda por Setúbal, é entrevistada do Vozes ao Minuto, esta sexta-feira.

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© Horacio Villalobos#Corbis/Corbis via Getty Images

Teresa Banha
16/05/2025 08:36 ‧ há 9 horas por Teresa Banha

Política

Legislativas

A dois dias de saber se vai partilhar a bancada parlamentar com três dos fundadores do Bloco de Esquerda (BE), Joana Mortágua confessa estar "entusiasmada" com essa possibilidade - para além de se sentir "honrada" também.

 

Em entrevista ao Notícias ao Minuto, a cabeça de lista do partido por Setúbal, defende que os eleitores devem deixar a calculadora de lado no próximo domingo e votar com o coração - deixando a garantia de que os bloquistas estão prontos para se sentar à mesa e chegar a acordos com outras forças políticas, como em caso de necessidade, é a sua "obrigação."

Da crise na habitação à luta do feminismo, onde o partido tem "provas dadas" - apesar do caso polémica que assombrou o partido há meses -, Joana Mortágua fala sobre temas-chave para os bloquistas. Entre eles está a defesa da implementação de um teto às rendas, com referências a modelos já conhecidos, a defesa de construção pública também para a classe média, a denúncia de boicotes por objeção de consciência institucional (tornando a objeção de consciência individual numa arma coletiva) e, também, a proposta para que a violação passe a ser crime público, a par do que já acontece no contexto de violência doméstica

 É absolutamente imoral ter uma casa vazia, a especular, enquanto há pessoas a viver na rua e enquanto há pessoas que não têm casa para morar

O teto às rendas: a medida tem sido muito falada durante a campanha e tem provas dadas noutros países. Em quanto tempo seria possível aplicá-la efetivamente?

É uma medida que precisaria de algum tempo para ser implementada - mas não é muito. Se fosse esse o modelo escolhido, o tempo era aquele de fazer uma plataforma que pudesse funcionar como funciona a plataforma holandesa, que permite inserir os dados da casa e atribuir uma pontuação à casa através dessas características. Seria preciso estabelecer esses critérios e parâmetros - são questões técnicas, que não conheço ao detalhe. Mas não vejo razão para que demore mais tempo do que aquele da implementação técnica da medida.

A ser aprovada, quais seriam as maiores dificuldades?

É uma medida de emergência para tempos de emergência. Tem a ver precisamente com o facto de não haver nenhuma outra medida - e já foram tentadas várias - que tenha resultado. Todas as medidas do Governo que supostamente iam baixar o preço da habitação, fizeram-no subir. Portanto, é preciso ir no sentido inverso e é preciso tomar medidas corajosas.

Os desafios são garantir que as casas não fogem do mercado de arrendamento para outros mercados. Para isso, é preciso que seja simultânea uma penalização muito grande das casas vazias, que é feita hoje através Imposto Municipal sobre Imóveis [IMI] - e tem de haver um grande controlo disso. É absolutamente imoral ter uma casa vazia, a especular, enquanto há pessoas a viver na rua e enquanto há pessoas que não têm casa para morar. [E é preciso haver] um controlo dos fogos habitacionais que são desviados para efeitos turísticos - no fundo, tem a ver com controlar Airbnb.

Estas medidas têm de ser simultâneas. É isso que nos mostra a aplicação da medida noutros sítios.

Aqui, criámos uma ideia - que é uma ideia muito de país pobre, muito de país em desenvolvimento - de que a habitação pública é só para os pobres

Como por exemplo?

Na Catalunha, o controlo das rendas baixou as rendas em cerca de 6,4%. Não é imenso, mas é em contraciclo em relação a Portugal, porque em simultâneo houve medidas sobre a questão do turismo e, sobretudo, da absorção de casas que estão vocacionadas para o mercado de arrendamento pelo mercado turístico. É preciso recuperar essas casas e não se faz isso sem limitar o Airbnb.

O direito à habitação está consagrado na Constituição da República Portuguesa. No pós-25 de Abril acha que se cumpriu alguma vez o direito à habitação?

Não, ficou para trás. Fizemos uma escola pública, fizemos o Serviço Nacional de Saúde (SNS) e esquecemo-nos de que precisamos de um serviço público de habitação. E um serviço público de habitação não é aquilo que se fez nos anos 90. Por que razão é que a Holanda, Áustria ou Dinamarca conseguem reagir mais facilmente do que nós a crises e picos especulativos na habitação? Porque têm parques públicos que chegam a 20% ou 30%. Aqui, criámos uma ideia - que é uma ideia muito de país pobre, muito de país em desenvolvimento - de que a habitação pública é só para os pobres. Enquanto nos países ricos a habitação pública é para a classe média.

Existe esse preconceito, que também é preciso mudar juntamente com as medidas.

Exatamente. É preciso construir para a classe média. E o problema é que deixámos agravar a crise da habitação a tal ponto que, neste momento, se mobilizássemos toda a habitação que vai ser construída para pessoas que vivem em condições indignas, não íamos ter suficiente para distribuir em termos de classe média. Portanto, vamos continuar a ter um problema. E é por isso que é preciso intervir no mercado, que está completamente manipulado.

Objeção de consciência deixou de ser ato individual de um médico e transformou-se, muitas vezes, em objeção de consciência coletiva de serviços inteiros. Isso não é objeção de consciência, é um boicote à Lei

Juntamente com outros partidos de Esquerda, o Bloco tem vindo a dizer que quer alargar o prazo da Interrupção Voluntária da Gravidez (IVG) - para as 14 semanas. Voltar a esta discussão será prioritário numa próxima legislatura?

Nós demos uma oportunidade à Lei e tínhamos de a dar. Esta é uma Lei que foi testada e precisa de ser melhorada. Sabemos exatamente os pontos em que ela precisa de ser melhorada.

Quais são?

Tem que ver com o prazo e com os obstáculos que ainda existem ao acesso - e tem que ver com a forma como a objeção de consciência deixou de ser um ato individual de um médico e se transformou, muitas vezes, em objeção de consciência coletiva de serviços inteiros. E isso não é uma objeção de consciência, é um boicote à Lei.

Nós não fizemos a Lei, nem a luta, para as mulheres terem que ser forçadas a gravidezes não desejadas, terem de ser empurradas para o estrangeiro ou até terem de ser empurradas para abortos clandestinos ou para terem que pagar para abortar.

O ADN, por exemplo, defende essa última possibilidade no seu programa eleitoral.

O aborto é uma conquista tão consolidada que nenhum partido tem coragem de dizer que quer reverter a Lei. Mas, a verdade, é que depois encontram formas - e uma delas é dificultando o acesso ao aborto no SNS - que fazem com que depois muitas mulheres não tenham acesso a ele. Sobretudo, em regiões do Interior, regiões onde há menos hospitais. Um exemplo: na Região Autónoma dos Açores, não é possível realizar um aborto.

Acho atroz querer proteger os homens de denúncias falsas, mas não querer proteger as mulheres de violadores que poderiam ser denunciados por terceiros que assistem

Esta semana, o Bloco de Esquerda assumiu o compromisso de tornar a violação como o crime público na próxima legislatura. Há quem aponte desvantagens, como o risco de denúncias falsas. Como se faz esta 'mediação'?

É preciso pôr na balança e na consciência a comparação entre a possibilidade de denúncias falsas e a quantidade de crimes ocultados que existem. Há muito mais homens violadores encobertos pela privacidade e pela profunda vergonha e, no fundo, estigma, que ainda impede as denúncias. E há estudos que dizem isso - aquilo que impede a denúncia é em primeiro lugar o estigma e o medo. Ou medo do agressor ou medo da revitimização da sociedade, que continua a culpar moralmente as mulheres pela agressão sexual. E nós temos de quebrar este estigma. E eu comparo isto com a violência doméstica.

Em que medida?

Pouco a pouco, a consagração da violência doméstica em crime público - que foi uma luta muito grande do Bloco, tanto que a violação no contexto de violência doméstica é crime público, porque se insere no quadro da violência doméstica - permitiu-nos ter políticas públicas de combate à violência doméstica que fizeram com que as mulheres perdessem a vergonha e que percebessem que quem tem de ter vergonha são os agressores. Há uma dupla moral que castiga muito as mulheres neste tipo de denúncias. Acho atroz querer proteger os homens de denúncias falsas, mas não querer proteger as mulheres de violadores que poderiam ser denunciados por terceiros que assistem, conhecem, que presenciam.

Tenho consciência das dificuldades de levar avante processos em que as vítimas não querem participar - e este é o argumento principal contra a Lei -, mas na violência doméstica também é assim: é preciso respeitar a vontade da vítima, mas é preciso criar uma responsabilidade de denúncia pública na sociedade.

Situação à Esquerda é clarinha. Qualquer que seja o cenário à Direita, é um cenário de horrores, de coligações pavorosas

Quantos deputados espera eleger o Bloco?

Não estamos a fazer esse tipo de contas. Queremos eleger deputados que são insubmissos em relação aos poderes instalados e que não têm onde se esconder. Porque as nossas propostas são tão claras, tão diretas, objetivas, tão direcionadas para as verdadeiras crises que estamos a viver, que toda a gente sabe com o que conta quando vota no Bloco. Os nossos compromissos são clarinhos, não há esconderijo possível.

À Direita fala-se agora de alguns acordos pré-eleitorais - passando a expressão, de "mexericos" ou não "mexericos" -, mas à Esquerda os partidos têm vindo a ser mais resistentes a assumir se poderão ser feitos acordos ou não. Não acha que, no geral, isso poderá prejudicar o voto à Esquerda?

Acho que a situação à Esquerda está clarinha. A Direita é a confusão e a instabilidade. A Direita - seja qual o cenário - é um cenário de horrores. Porque é um cenário de instabilidade ou de coligações pavorosas. À Esquerda, há uma garantia, que é: todos os partidos de Esquerda, a começar pelo Bloco, já mostraram no passado que assumem responsabilidades quando é preciso. O Bloco de Esquerda sempre disse que assumia todas as responsabilidades relativamente ao resultado eleitoral. Isso significa que nós travaremos um Governo da Direita.

Nem que para isso seja precisa uma nova Geringonça?

Nós temos as nossas propostas. Depois das eleições, vamos a jogo - digamos assim - com as nossas propostas. O que nós não fazemos é da política um jogo de matemática. O que nós pedimos às pessoas é que não votem de calculadora na mão. Votem com o coração, votem em liberdade, votem de acordo com as propostas que acham que estão certas. Os partidos é que têm a obrigação de, com o poder que lhes é dado pelos votos, de se sentar à mesa e chegar a acordos.

E o Bloco está disponível para tal?

O Bloco está sempre disponível para isso.

Houve uma campanha contra o Bloco de Esquerda porque há partidos que esfregam as mãos de derrubar o partido mais feminista do Parlamento

Quanto à saída das trabalhadores do BE que tinham sido mães há pouco tempo. Todas as explicações foram suficientes?

Sei que houve uma campanha contra o Bloco de Esquerda porque há partidos que esfregam as mãos de derrubar o partido mais feminista do Parlamento - e sabem que, com isso, conseguem impor uma derrota ao feminismo, porque tentam calar-nos.

Falamos do Chega?

Estamos a falar da Direita como um todo.

Demos os esclarecimentos e, na altura, dissemos, aliás, que este é um caso anterior à coordenação da Mariana [Mortágua], é um caso que já é antigo e foi agora repescado. Nós esclarecemos que fomos além daquilo que estávamos legalmente obrigados, precisamente porque temos a consciência de que temos responsabilidades relativamente às dificuldades que as trabalhadoras poderiam passar. Por isso, fizemos um esforço além da Lei para as proteger, dentro daquilo que era a nossa possibilidade também - num momento de perda eleitoral. Acho que esclarecemos bem o que aconteceu.

Tendo em conta que foi o caso mais polémico nos últimos tempos, e também o seu cariz, o partido não receia que este caso tenham algum impacto nos resultados destas Legislativas. Nomeadamente, com a saída do voto de mulheres mães.

Espero que não, sobretudo. Às vezes, sei que há reações emocionais e reações que têm mais que ver com o 'headline', com o título da notícia e com o sensacionalismo que há à volta dela do que propriamente com a decisão racional. Temos a consciência tranquila e vamos continuar a lutar pelas mulheres.

O Bloco de Esquerda tem provas dadas no Parlamento - e fora. Não há uma única luta pelos direitos das mulheres em Portugal, uma única conquista das mulheres nos últimos 20 anos que não tenha a marca do Bloco de Esquerda - a paridade, o aborto, as questões de violência obstétrica, a menopausa, a endometriose, os direitos sexuais e reprodutivos, a igualdade salarial. Esse trabalho é suscetível de ser verificado por qualquer polígrafo. Estivemos sempre na liderança desses processos.

Nós exercemos essa igualdade. Que me recorde, nunca aconteceu na história da Democracia portuguesa um partido ser liderado por duas mulheres, uma a seguir à outra. Nós exercemos e promovemos a igualdade de uma maneira que acho que está, do ponto de vista da nossa defesa do feminismo, acima de suspeita.

Temos perfil aberto e dialogante - e aventuramo-nos em candidaturas [presidenciais] que não são nossas. Não fazemos é fretes. Não temos medo de ir a eleições

Está entusiasmada com a possibilidade de vir a partilhar a bancada Francisco Louçã, Fernando Rosas e Luís Fazenda, três grandes nomes do Bloco?

Estou! Entrei para o Parlamento já num Parlamento muito renovado. Foi precisamente nessa transição, mas entrei para o Bloco na altura em que os fundadores eram deputados. Tenho belíssimas memórias de grandes intervenções parlamentares. Acho que os três são enormes tribunos e seria um orgulho e uma grande honra partilhar a bancada com eles.

Pode partilhar uma dessas memórias?

Lembro-me de várias intervenções, mas, particularmente, lembro-me das intervenções dos debates quinzenais do Francisco Louçã com o Pedro Passos Coelho. Foi uma altura muito dura e foi precisamente no mandato antes de eu entrar para o Parlamento. Entrei em 2015 e aquele mandato da troika foi um mandato muito difícil para todos nós - e aqueles embates do Chico Louçã com o Pedro Passos Coelho... acho que muitos deles ficaram na nossa memória.

Para além das Legislativas: Marisa Matias já afastou uma candidatura a Belém e pediu uma "candidatura forte à Esquerda". É mais provável que haja um candidato vindo do Bloco ou que o Partido apoie essa tal candidatura forte à Esquerda?

O Bloco assumiu que estava disponível e à procura de um candidato que à Esquerda pudesse afirmar, de forma aberta e unitária, os grandes valores da Esquerda. Quando digo isto, falo de um candidato a Presidente da República que se pudesse posicionar em relação ao genocídio na Palestina, que se posicionasse muito claramente em relação à defesa da Ucrânia - mas não aceitasse acriticamente a corrida a um armamento sob o comando de [Donald] Trump. Alguém que pudesse ter uma perspetiva democrática das relações internacionais e não a selvageria que a extrema-direita quer impor às relações internacionais. E alguém que, internamente, tivesse uma perspetiva de defesa dos setores estratégicos e da nossa soberania democrática.

Sempre tivemos um perfil aberto e dialogante. Gostamos - e aventuramo-nos com gosto - em candidaturas que não são nossas. O que não fazemos é fretes a ninguém. Havendo essa candidatura - e se pudermos chegar a acordo com ela -, muito bem. Se ela não existir, nós não temos medo nenhum de ir a eleições.

Leia Também: "Continuo a defender mesmos valores. A política não é Benfica - Sporting"

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