Dark Romance: O que atrai no género literário que "romantiza" violência?

Livros que retratam cenas sexualmente explícitas, perseguição ou consentimento dúbio. Além de não serem apropriados para menores de idade, podem levar à romantização do abuso sobre as mulheres. Estivemos à conversa com a psicóloga Rita Mateus, para compreender a euforia que gira em torno do Dark Romance.

Notícia

© Shutterstock

Mariana Moniz
21/04/2025 08:40 ‧ ontem por Mariana Moniz

Lifestyle

Literatura

No dia 29 de março, várias pessoas reuniram-se na livraria Bertrand, do Chiado, para falarem sobre um subgénero literário que está agora a emergir em Portugal: o Dark Romance. 

 

Nesse evento, foi apresentado o livro 'Às Escuras' de Navessa Allen. A obra é descrita como um "romance negro, perigosamente viciante e impróprio para leitoras impressionáveis". 

'Às Escuras' foi eleito bestseller do New York Times e tem vindo a tornar-se cada vez mais viral nas redes sociais. Porém, retrata temas pesados como conversas e cenas sexualmente explícitas, consumo de álcool, abuso infantil, perseguição, consentimento dúbio e muitos outros que, além de não serem apropriados para menores de idade, podem levar a uma romantização da misoginia e do abuso sobre as mulheres.

Ainda assim, este e outros livros de Dark Romance estão facilmente disponíveis nas editoras e livrarias portuguesas, sendo a principal escolha de jovens entre os 13 e os 17 anos. O Lifestyle ao Minuto falou com Rita Mateus, Psicóloga Clínica e Psicoterapeuta, para compreender melhor este fenómeno em crescimento, onde está patente a "romantização de comportamentos que não são saudáveis ou adequados relacionalmente".

Notícias ao Minuto Psicóloga Clínica e Psicoterapeuta© Rita Mateus  

Como podemos definir o Dark Romance?

O Dark Romance é um subgénero literário do romance. Um tipo de literatura que se apresenta com uma escrita cativante, envolve o leitor em narrativas à volta de temas como o abuso sexual, a perseguição, o assédio e a violência (nos seus variados tipos). São histórias nas quais, de forma geral, há uma personagem principal do género masculino, cujos comportamentos são marcadamente misóginos, machistas, controladores, possessivos e abusivos e, do outro lado, está uma mulher que é objetificada, colocada num lugar de submissão e vítima de uma violência psíquica profunda. Todos estes comportamentos são romantizados e legitimados como se fossem a expressão da "paixão intensa e voraz" que há entre eles.

Há um machismo intrínseco ainda latente nas gerações atuais, este tipo de literatura dá-lhes voz e palco, é o reflexo daquilo que se vive

Por que acha que este género literário está a emergir em Portugal? O que atrai tanto nestes livros?

Não só em Portugal, como em todo o mundo, este género literário tem ganhado cada vez mais leitores. A literatura, de qualquer género, é sempre um reflexo do seu tempo e dos valores da cultura e sociedade àquela data. Não há muito tempo atrás, a desigualdade entre homens e mulheres ainda era de um abismo colossal, assim como formas de violência contra a mulher não eram sequer reconhecidas ou penalizadas criminalmente. Há um machismo intrínseco ainda latente nas gerações atuais, este tipo de literatura dá-lhes voz e palco, é o reflexo daquilo que se vive.

Assim como ainda há mulheres que sentem na pele diariamente o peso da desigualdade e da opressão, vindos de uma herança geracional em que o papel da mulher é cingido à submissão e à pouca expressão das suas vontades e desejos. Ainda vivemos neste tempo e estes livros vieram romantizar estas dinâmicas que existem dentro de muita gente como algo natural e moralmente aceitável. 

São jovens que deveriam estar a ter acesso a informações sobre consentimento, sobre terem o poder sobre o seu próprio corpo, o direito a definirem limites e a respeitarem a sua intimidade. Neste tipo de literatura fantasia-se precisamente sobre o seu oposto

Que problemáticas é que o Dark Romance pode trazer para os adolescentes/jovens adultos e para as suas relações? Este género literário romantiza as relações abusivas e o assédio? Se sim, de que forma?

A problemática que traz consigo é precisamente a romantização de comportamentos que não são saudáveis ou adequados relacionalmente. Transmite-se a ideia, ainda que ficcional, de que exercer violência (física, psíquica, relacional ou sexual) sobre o outro é legítimo quando se está sob a justificativa de um amor ou paixão intensos. Diria que a principal problemática se reflete no facto de termos camadas jovens como leitores deste género de literatura.

Estamos a falar de jovens, muitos deles, entre os 13 - 17 anos, que não têm ainda maturidade psíquica para compreender os limites entre o que é aceitável num relacionamento e o que não é. Aliás, estão justamente nestas idades a aprender a relacionar-se com os seus pares a um nível mais íntimo, e muitas vezes sexual. São jovens que deveriam estar a ter acesso a informações sobre consentimento, sobre terem o poder sobre o seu próprio corpo, o direito a definirem limites e a respeitarem a sua intimidade. Neste tipo de literatura fantasia-se precisamente sobre o seu oposto.

Na maioria das vezes, quem consome este tipo de literatura não são propriamente os indivíduos que se identificam com o agressor, mas sim as pessoas que se identificam com as vítimas. Nesse caso, com certeza que estamos a perpetuar um branqueamento da violência contra as mulheres.

Estes livros apresentam cenas sexuais explícitas. Como é que os leitores passam a ver a sexualidade? Existe alguma possibilidade de se tornarem mais violentos, ao ponto de terem comportamentos de risco ou que maltratem o outro? (Ex. violações)

Não sei se podemos assumir essa relação de causalidade. Até porque, na maioria das vezes, quem consome este tipo de literatura não são propriamente os indivíduos que se identificam com o agressor, mas sim as pessoas que se identificam com as vítimas. Nesse caso, com certeza que estamos a perpetuar um branqueamento da violência contra as mulheres. É isto que fica implícito inconscientemente quando, nestes enredos, associamos prazer, sedução, amor e afetos a comportamentos narcísicos, opressores, violentos e traumáticos. Uma coisa fica ligada à outra como se fosse um tipo de relacionamento aceitável. Quanto às vivências sexuais, naturalmente que pode e deve haver espaço para cada pessoa explorar a sua sexualidade e fantasias.

Este tema relaciona-se, por exemplo, com o consumo de pornografia. Uma coisa é se estivermos a falar da chamada 'pornografia ética' em que o consumidor sabe de antemão que o que acontece ali é consentido, que não está de facto a ser exercida nenhuma forma de violência com nenhum dos presentes, outra coisa é o consumo de pornografia 'mainstream' cujos enredos envolvem 90% das vezes, uma mulher submissa e sujeita ao prazer e vontades do outro, maioritariamente de um homem, reforçando novamente este lugar de objetificação da mulher. Tanto o consumo deste tipo de literatura, onde muitas vezes há cenas sexuais explicitas, como o consumo de pornografia, deveria ser exclusivo para pessoas maiores de idade. Assumindo que terão uma maior maturidade emocional e capacidade critica para saber interpretar aquilo que estão a consumir.

Talvez sejam jovens que mais facilmente aceitem como normais determinados comportamentos dentro de uma relação, não só porque leem este tipo de livros, mas precisamente porque vivem dentro da cultura e sociedade que estes livros refletem.

Quem lê este género literário, consegue distinguir a realidade da ficção? Ou existe a probabilidade destes jovens quererem estar numa relação semelhante às descritas nos livros de Dark Romance?

Um adulto à partida sim, um jovem com 15 anos por exemplo pode não o conseguir fazer. Simplesmente porque não tem maturidade emocional para tal, nem uma mundividência constituída que lhes permita ter esse filtro. Não diria taxativamente que vão querer estar em relações deste género, mas é uma ideia de uma relação com estes contornos que se constrói no seu inconsciente, como alvo de fantasia e possivelmente de desejo. Talvez sejam jovens que mais facilmente aceitem como normais determinados comportamentos dentro de uma relação, não só porque leem este tipo de livros, mas precisamente porque vivem dentro da cultura e sociedade que estes livros refletem. Uma sociedade que cada vez mais romantiza e legitima a violência relacional e sexual.

Para os jovens que já se encontram num relacionamento amoroso, este género de livros pode até ser uma ajuda para aprender a distinguir os sinais de violência/abuso, ou pode prejudicar ainda mais?

Diria que dificilmente os ajudará a distinguir esses sinais. Dependendo do plot twist de cada livro, da forma como a narrativa encontra o seu desfecho. Pode ser que existam alguns livros em que haja essa reviravolta e terminamos com a personagem que foi vítima da possessão do outro a sobreviver à dor daquilo a que foi sujeita e que reconhece o trauma que em si ficou inscrito. Se for por aí, podemos ter alguma margem para que fiquem mais claros os limites entre o que é violência e o que não é, e as consequências que dela restam.

Muitos dos leitores de Dark Romance relatam "não saber porque se sentem tão atraídos por este tipo de literatura"

Os leitores de Dark Romance deveriam fazer terapia?

Para fazer terapia, é preciso primeiro termos a consciência de que algo não está bem connosco, reconhecermos que estamos a sofrer de alguma forma, que estamos presos em algum padrão (psíquico ou relacional) disfuncional, e por isso procuramos ajuda psicológica. Muitos dos leitores de Dark Romance relatam inclusive "não saber porque se sentem tão atraídos por este tipo de literatura". Por outras palavras, há qualquer coisa que os atraí nestas dinâmicas de poder e submissão, relacionais e sexuais, há algo nestas narrativas que lhes desperta interesse e curiosidade. Talvez, os leitores (adultos) deste tipo de literatura, se possam questionar: Que visões têm dos relacionamentos? Nestes romances que pontos vos despertam fascínio? Conseguem identificar aquilo que é e não é saudável num relacionamento? Como olham para os limites do vosso corpo e sexualidade? Que narrativa vossa é que estes romances estão a colocar por palavras?

Estes livros costumam ter pré-aviso dos 'trigger warnings' (alertas)? Se não, deveriam ter? 

Não sei se todos têm, mas dado o tipo de conteúdos que tratam, com certeza que deveriam ter. Sobretudo para ajudar pais e adultos responsáveis por jovens menores, a filtrar de forma mais imediata o tipo de conteúdo que encontrarão neste género de literatura e assim não os considerar como uma leitura adequada para jovens.

Uma vez que estamos a falar de adolescentes/jovens adultos, que tipo de atenção é que os pais devem ter?

Este é um género literário que tem ganhado cada vez mais público muito jovem - pré-adolescentes e adolescentes, entre os 13-17 anos - fenómeno esse que faz com estes jovens tenham acesso a um tipo de conteúdo completamente desadequado para a sua idade e respetivo desenvolvimento psíquico e relacional. Os pais devem ter especial atenção aos conteúdos que os filhos consomem, e isso inclui, filtrar previamente o tipo de livros que os filhos leem. Se um resumo ou contracapa não forem suficientes para elucidar sobre o tipo de conteúdos que ali vão encontrar, há que ler primeiro para depois tomar uma decisão consciente e informada sobre se queremos ou não que os nossos filhos tenham acesso aquele tipo de narrativas. No caso deste género literário em específico, enquanto profissional de saúde mental, não me parece de todo adequado a menores de idade.

Estarmos conscientes acerca do implícito por detrás daquilo que estamos a ler é o primeiro passo que denota ou não se temos maturidade para ler este tipo de literatura

E aos adultos, os livros de Dark Romance afetam as suas relações e/ou o seu psicológico? Se sim, de que forma?

Como já percebemos este género de literatura é um espelho do que acontece na sociedade, é o reflexo de ideias, visões e fantasias coletivas que vivem dentro de muitos de nós. Há que olhar para este fenómeno de forma critica, questionarmo-nos sobre o que é humanamente ético ou não acontecer dentro da intimidade de uma relação. Estarmos conscientes acerca do implícito por detrás daquilo que estamos a ler é o primeiro passo que denota ou não se temos maturidade para ler este tipo de literatura.

Leia Também: Como é que as experiências da infância podem moldar as relações amorosas?

Partilhe a notícia

Escolha do ocnsumidor 2025

Descarregue a nossa App gratuita

Nono ano consecutivo Escolha do Consumidor para Imprensa Online e eleito o produto do ano 2024.

* Estudo da e Netsonda, nov. e dez. 2023 produtodoano- pt.com
App androidApp iOS

Recomendados para si

Leia também

Últimas notícias


Newsletter

Receba os principais destaques todos os dias no seu email.

Mais lidas